O que mais surpreende nas pessoas woke é o alto nível de espanto que evidenciam, e o estardalhaço que promovem, perante coisas óbvias e de há muito sabidas. Como se tivessem acabado de sair do jardim-escola e de descobrir que existiu um passado onde, como diz um conhecido autor, se faziam as coisas de forma diferente, os woke reagem com indignação e surpresa às injustiças e brutalidades da história, e a práticas que toda a gente lamenta, sim, mas sabe que foram, felizmente, abolidas.
Parte dessa surpresa tem a ver com ingenuidade; outra parte com emotividade em excesso; um terceira parte, ainda, com pouco conhecimento da matéria. São estes dois últimos aspectos — a emotividade e a ignorância — que aqui me interessam a propósito de declarações da activista Joacine Katar Moreira sobre uma coleira metálica usada por um escravo no século XVIII, ao que se julga, e que se encontra actualmente no Museu Nacional de Arqueologia. Em declarações ao jornal Público Joacine confessou-se particularmente incomodada com a dita coleira e com a forma como ela tem sido exibida pelo museu. A ex-deputada contou ao jornal que a coleira — onde pode ler-se a seguinte inscrição: “Este preto é de Agostinho de Lafetá do Carvalhal de Óbidos” — teria sido encontrada em 1908 por José Leite de Vasconcelos que, segundo Joacine Katar Moreira, “a caracterizou na época de forma absolutamente emocional, dizendo que lhe ardiam as mãos só de imaginar que aquele objecto tinha sido usado no corpo de um homem”. Joacine insurgiu-se por esta coleira só ter começado a ser exposta ao público em 2016, e lamentou que agora o seja com uma legenda meramente descritiva que se limita a indicar a função do objecto e as suas particularidades. “É assim” — criticou Joacine — “que catalogámos hoje uma peça que é o exemplo da maior desumanização da história, quando em 1908 Leite de Vasconcelos dizia que lhe ardiam as mãos”.
Há nesta queixa da activista dois aspectos que convém fazer ressaltar. Em primeiro lugar, Joacine Katar Moreira está aparentemente convencida de que apenas os negros foram escravizados e de que apenas eles foram forçados a usar coleiras e apetrechos equivalentes, e quem ler as suas declarações poderá ficar a pensar o mesmo. Mas não foi assim. A escravatura e a sua inerente desumanidade tocaram gente de todas as cores e proveniências, e a horrível coleira metálica, ou outras equiparáveis, foi usada não apenas nos pescoços de negros e por decisão de portugueses, mas também nos de outras gentes e por opção de outros povos. A coleira de metal ou de madeira era usada por escravos brancos ou negros e, até, por crianças escravas, como pode ver-se, por exemplo, nesta imagem extraída de um manuscrito medieval existente em Florença, na Biblioteca Medicea Laurenziana (ver imagem abaixo).
É importante assinalar, também, que em tempos muito diferentes dos actuais as autoridades portuguesas entenderam e impuseram coleiras identificadoras como a que foi encontrada por Leite de Vasconcelos como forma de tentar minorar o sofrimento físico dos escravos, poupando-os à marcação na pele com ferro em brasa, uma prática comum entre vários povos, incluindo africanos.
Em segundo lugar, e mais importante, Joacine quer, à boa maneira woke, que a emotividade substitua a racionalidade, e que os estremecimentos da alma tomem a vez da lucidez e da objectividade. Quer que em vez da descrição do que era aquela coleira e qual a sua finalidade, se recorra a um tipo de legenda que difunda uma censura moral, um juízo de valor, e que puxe ao sentimento. Quer condenações em vez de explicitações e supõe que é essa a função dos museus e da aprendizagem da História. Joacine ainda não terá percebido que o conhecimento histórico não se adquire nem se transmite com base na emotividade. Isso é o campo da literatura e, mais ainda, do teatro — o terreno ideal para os histriónicos —, mas não o do estudo do passado.
Volto ao principio. O que mais ressalta na atitude das pessoas woke, como Joacine Katar Moreira, é a sua recusa em (ou incapacidade de) relativizar e contextualizar. E porquê? Por duas razões conjugadas: desde logo porque não querem abrir mão da emotividade e da indignação, os combustíveis que as propulsionaram para a ribalta das notícias e para o palco da esfera pública; depois, porque não têm conhecimentos suficientes para pôr as coisas em perspectiva e em contextos mais amplos. Claro que, à míngua de conhecimentos e de argumentos para contrapor ao que aqui afirmo, Joacine poderá iludir as questões e dizer apenas — como há uns tempos já disse — que eu sou uma “figura sinistra e alucinada” e que o que escrevo não é História, mas apenas “balelas” e “estórias de encantar fascistas e colonialistas.” Nada disso surpreende numa pessoa que milita nesse armazém de ódios e insultos a que chamamos extrema-esquerda, e que é publicamente conhecida por vários descomedimentos. Mas as pessoas mais razoáveis e construtivas seguirão outro caminho e talvez gostem de saber que cangas e coleiras em pescoços de escravos não eram um triste exclusivo dos portugueses, mas sim objectos lamentavelmente comuns no mundo das relações de extrema sujeição, desde a Mongólia às Américas, na outra ponta do Mundo.
Sim, a coleira é um horrendo vestígio da escravatura, uma instituição bárbara, injusta, cruel e desumana, onde quer que ela tenha existido e para todos os que a praticaram, toleraram e sofreram os seus efeitos, tenham eles sido negros, brancos ou de qualquer outra cor. E foi também, ou sobretudo, por ter interiorizado esse sentimento de horror e de consequente rejeição que, nos séculos XVIII e XIX, o Ocidente — repito: o Ocidente — se virou decididamente contra essa instituição e, com grande esforço e pesado custo, lhe foi pondo fim. Hoje, felizmente, já não são legais coleiras como aquela. Aliás, já há mais de 200 anos que, em Portugal, não é possível informar a sociedade que a pessoa X pertence à pessoa Y. Essa é a principal lição que a coleira do “preto (que pertencia) a Agostinho de Lafetá” nos ensina. A grande mensagem que Leite de Vasconcelos nos transmite com as suas mãos a arder só por pegarem naquele maldito objecto, é que as suas são as mãos de um homem que vive num mundo e num tempo em que a ideia de escravatura já repugnava e já se tornara indefensável e intolerável. As suas são as mãos de um homem que foi educado segundo ideias abolicionistas. Essa é, quanto a mim, a principal lição a extrair da coleira que tanto indigna Joacine Katar Moreira.