Caro leitor, uma palavrinha prévia de esclarecimento sobre o Talmude, antes de passar à narração dos desempenhos/performances de Johnny (Galamba) e de Freddy (Pinheiro) numa Comissão de Inquérito Parlamentar, parece que relacionada com “problemas estruturais” muito sérios na nossa querida TAP – que muito tem feito, justiça lhe seja feita, para que alguns portugueses possam continuar a sair de Portugal.
O modo de raciocinar talmúdico caracteriza-se por um extraordinário espírito inquisitivo, todo ele assente numa análise e numa ponderação extremamente minuciosas das pequenas diferenças, tão lúcidas quanto mesquinhas, a bem dizer, que tornam cada contexto de enunciação de um determinado acto de fala diferente de outro. Ora, nos últimos dias, o que justamente não tem faltado em Portugal são “contextos de enunciação” a respeito da situação, ia dizer cancerígena, mas para não prejudicar o orçamento do SNS opto por complicada, da TAP. No Parlamento, em primeira instância, mas sobretudo nas televisões, nas redes sociais, em restaurantes, em cafés, em ginásios, em barbeiros, em cabeleireiras, etc., os actos de fala de Johnny e de Freddy na Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP são objecto de um sôfrego e histérico pasto – valha a verdade quase religioso no seu frenesim – por parte do melhor que há no profissionalizadíssimo alto-comentariado da pátria.
Bom, estava eu a dizer que há no espírito talmúdico uma mistura de lógica clássica formal, fundada no princípio de causalidade, e de lógica de ficção, onde a realidade e o sonho, a verdade e a mentira, o fact e o checking, muitas vezes se interpenetram e confundem. Mas o que na história dos limpa-chaminés Johnny (Galamba) e Freddy (Pinheiro) no parlamento português me interessa sublinhar é que o Talmude é muito rigoroso e sumamente cuidadoso no que diz respeito às palavras empregues nos actos de fala que articulam o discurso, sendo que o seu exercício mais refinado está em tentar compreender os duplos sentidos e todos os jogos de palavras por detrás das expressões mais simples da Torah. No Talmude, dá-se aquilo a que o falecido Georges Steiner chamava “a heresia do infinito hermenêutico hebraico”, que ao proceder a uma releitura interminável de cada acto discursivo e, por conseguinte, ao incentivar também uma reavaliação infinita dos textos nos quais aqueles ocorrem, torna praticamente impossível a fixação de um termo final ao sentido. É uma hemorragia permanente.
Resta dizer que a dimensão interpretativa que se encontra no Talmude é muitas vezes uma forma superior de humor que confere ao homem a possibilidade de este se reinventar – sempre e sempre – de outra maneira. Uma pessoa importante cujo nome não me ocorre, afirmou um dia que o que numa mentira há de fascinante, e de preocupante, é que ela introduz por si mesma algo de novo no mundo; que uma mentira é um acto livre que dá início a algo de novo, que a capacidade de mentir e a capacidade de agir, ou de começar algo novo, se dão juntas. Ora, é justamente este extraordinário poder da mentira, seja por omissão ou por sugestão, seja por simulação ou por dissimulação, com todos os problemas de sincronia e de diacronia que nele se jogam, que constitui o aspecto propriamente folhetinesco dos actos de fala de Johnny e de Freddy na Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP. O preocupante da coisa é um cidadão verificar que matilhas de jornalistas e de comentadores “autorizados” (sic!) insistem em tratar o “contexto de enunciação” com pouco mais profundidade e sabedoria do que aquela que usualmente consagram a uma análise de um derby nesse desporto-rei a que chamamos futebol: “Qual o limpa-chaminés que ganhou: Johnny ou Freddy?
Precisamente, caro leitor, a ideia da história que se segue é a de ela nos ajudar e ensinar a evitar e a ultrapassar perguntas estúpidas ou… falsos problemas: “Por Johnny ou por Freddy”? Mas espera lá, a TAP é ou não um… problema estrutural?
Falta só explicitar que a Chaminé da nossa história é, ou simboliza, o governo do nosso primeiro-ministro, Dr. António Costa. É por ela que Johnny e Freddy, os limpa-chaminés de serviço à nossa história, descem.
O jovem Simão Pereira apostou com o seu amigo David Cardoso em como sairia aprovado da entrevista com o rabino. Este, inteira-se sumariamente sobre os dados do candidato e pede-lhe elementos sobre as suas qualificações.
– Sou doutorado em Filosofia. O assunto da minha tese foi a… lógica socrática.
– Muito bem. Vou testá-lo para verificar se tem o espírito adequado aos estudos judaicos. Já que essa é a sua especialidade, vou propor-lhe alguns problemas de lógica.
Simão, embora um pouco nervoso, sente-se confiante e preparado. O rabino estende dois dedos:
– Dois homens descem pelo interior de uma chaminé. Um sai limpo, o outro enfarruscado. Qual deles se vai lavar?
Simão contém o riso e pergunta:
– É isso, o teste de lógica?!
– Exactamente – responde o rabino, imperturbável.
– É claro que é o que está sujo que se vai lavar.
– Falso. O que está limpo é que se vai lavar. Lógica primária. O que está sujo vê o que está limpo e julga que está limpo também. Portanto, não se vai lavar. O que está limpo vê o que está sujo e julga-se sujo também, e, como é óbvio, é precisamente ele que se vai lavar.
– Muito claro – conclui Simão. – Passemos ao teste seguinte.
O rabino estende, de novo, dois dedos:
– Dois homens descem pelo interior de uma chaminé. Um sai limpo, o outro enfarruscado. Qual deles se vai lavar?
– O senhor acabou de me dar a resposta certa: é o que fica limpo que se vai lavar.
– Falso. Lavam-se ambos. É lógico. O que está limpo vê o que está sujo e julga-se sujo também, e vai-se lavar. Mas o que saiu sujo vê o que saiu limpo lavar-se e segue-lhe o exemplo, lavando-se também. Portanto, lavaram-se ambos.
– Bom… confesso que não raciocinei dessa forma – diz Simão. – Faça-me outro teste. Creio que já compreendi o método.
O rabino mostra os dois dedos:
– Dois homens descem pelo interior de uma chaminé. Um sai limpo, o outro enfarruscado. Qual deles se vai lavar?
– Ambos! Chegámos, agora mesmo, a essa conclusão!
– Falso. Nenhum deles se lava. É lógico: o que está sujo vê o que está limpo e julga-se limpo também, portanto, não se lava. O que está limpo vê que o que está sujo não se lava e, portanto, não se lava também. Nenhum deles se lavou.
Simão fica desanimado. O rabino estende de novo os dois dedos fatídicos.
– Dois homens descem pelo interior de uma chaminé. Um sai limpo, o outro enfarruscado. Qual deles se vai lavar?
Com uma voz já quase inaudível, Simão responde:
– Nenhum deles se lava.
– Falso – sentencia o rabino. Já chegou à conclusão de que a… lógica socrática não constitui uma base suficiente para resolver os problemas talmúdicos? A resposta é que a questão colocada é estúpida, pois como é possível que duas pessoas que passam pelo interior da mesma chaminé possam sair uma suja e outra limpa? Todo aquele que não compreender isto de imediato jamais terá o espírito apto para os ensinamentos do Talmude.