Pode-se dizer que, na paixão de Jesus de Nazaré, os homens cristãos, em geral, portaram-se muito mal.
De facto, os apóstolos brilharam pela sua ausência no processo que levou à execução do seu Mestre. Desapareceram, depois de Cristo ter sido detido no monte das oliveiras, onde estavam com ele. Não se fazem ouvir quando Pôncio Pilatos, por ocasião da Páscoa judaica, perguntou à multidão quem deveria amnistiar. Quando é necessário que alguém ajude Jesus a levar a Cruz, ninguém – apesar de que, numa ocasião, Jesus enviara a pregar 72 dos seus discípulos! – se oferece e, por isso, é requisitado, à força, Simão de Cirene. Na primeira multiplicação dos pães, para além das mulheres e crianças, cinco mil homens ficaram saciados (Mt 14, 21), mas quando Jesus é crucificado, João é o único dos apóstolos presente.
Não obstante esta generalizada infidelidade masculina, há duas honrosas excepções: José de Arimateia e Nicodemos. O primeiro é referido pelos quatro evangelistas e, ao contrário de Nicodemos, a sua intervenção ocorre única e exclusivamente por ocasião da morte de Jesus: não se conhecem os seus antecedentes, nem o que lhe aconteceu depois da ressurreição de Cristo.
No próprio dia da crucifixão de Jesus e já depois de ocorrida a sua morte, “veio um homem rico de Arimateia, chamado José, que também era discípulo de Jesus. Foi ter com Pilatos, e pediu-lhe o corpo de Jesus. Pilatos mandou então que lhe fosse dado o corpo. José, tomando o corpo envolveu-o num lençol branco, e depositou-o no seu sepulcro novo, o qual tinha mandado abrir numa rocha. Depois rolou uma grande pedra para diante da boca do sepulcro, e retirou-se.” (Mt 27, 57-60).
É significativo que o evangelista, talvez porque tinha sido cobrador de impostos, comece por dizer que este José era “rico”, o que se prova pelo facto de ser proprietário de um sepulcro, que tinha mandado escavar na rocha. A sua posição económica explica o seu fácil acesso ao governador romano. Se o mesmo pedido tivesse sido formulado por um dos apóstolos, Pilatos teria mais facilidade em o negar, até porque se tratava de um privilégio. De facto, a praxe romana era a de deixar crucificados os cadáveres dos condenados à morte, para sua desonra e escarmento público.
A referência ao “lençol branco”, que serviu de mortalha ao divino crucificado, é confirmada pela existência do santo sudário. Embora, inicialmente, uma comissão de peritos tivesse posto em causa a sua autenticidade histórica, a mesma consta agora, sem sombra de dúvida científica, depois de uma investigação interdisciplinar que até envolveu a NASA e que é unânime em afirmar que o homem do sudário coincide exactamente com o que os relatos evangélicos dizem sobre a paixão e morte de Jesus de Nazaré. Ante esta conclusão científica, a Igreja reconhece que esta mortalha, que é inequivocamente do século I, é uma relíquia fidedigna da paixão e morte de Cristo.
São Marcos, o autor do segundo Evangelho canónico, reafirma que foi na tarde do próprio dia da morte de Jesus que “José de Arimateia, membro ilustre do Sinédrio, que também esperava o Reino de Deus, apresentou-se corajosamente a Pilatos e pediu-lhe o corpo de Jesus.” (Mc 15, 43). Acrescenta que o romano estranhou que o nazareno já tivesse falecido, porque os supliciados costumavam ficar muitas horas suspensos do madeiro até que ocorresse o seu falecimento, mas, neste caso, tendo em conta que tinha sido antes flagelado, a morte aconteceu poucas horas depois de Jesus ter sido crucificado. Depois de ter obtido do centurião a certeza do óbito, Pilatos “deu o corpo a José” (Mc 15, 45). Como foi alguém do Sinédrio que pediu o cadáver, Pilatos deve ter suposto que essa poderosa instituição judaica não se oporia ao que lhe fora sido solicitado por um “membro ilustre”.
O terceiro evangelista, São Lucas, confirma a pertença de José de Arimateia ao Sinédrio e acrescenta que “era varão bom e justo” e “que não tinha concordado com a determinação dos outros, nem com os seus actos” no que respeita à condenação de Cristo. Como o seu nome indica, era “oriundo de Arimateia, cidade de Judeia” e “também esperava o reino de Deus” (Lc 23, 5-51). Ou seja, José de Arimateia não apenas foi extraordinariamente corajoso ao pedir a Pôncio Pilatos o corpo de Jesus, súplica esta que o identificava, necessariamente, como seu seguidor, como também teve a valentia de discordar da decisão do Sinédrio de condenar Jesus à morte, entregando-o aos gentios, com a falsa acusação de ser inimigo do César.
O último evangelista, João, que foi também testemunha ocular da morte de Cristo na Cruz, refere não apenas a intervenção de José de Arimateia, mas também a de Nicodemos. Enquanto do primeiro diz “que era discípulo de Jesus, ainda que oculto por medo dos judeus” (Jo 19, 38), do segundo tinha escrito que era “um homem da seita dos fariseus, chamado Nicodemos, um dos principais entre os judeus. Este foi ter com Jesus, de noite …” (Jo 3, 1-2) – a forma discreta como ocorre este encontro nocturno explica que também José fosse um discípulo “oculto” de Jesus, não tanto por medo, pois o não teve para pedir descaradamente o seu corpo a quem o tinha condenado à pena capital, mas por elementar prudência, que não o impediu, contudo, de se opor aos membros do Sinédrio que condenaram Jesus à morte.
Dois mil anos decorridos sobre a paixão e morte de Jesus de Nazaré, renova-se a pusilanimidade dos cobardes, como Pôncio Pilatos, bem como a criminosa e hipócrita actuação dos membros dos novos sinédrios. Mas, talvez, a pior traição seja a tibieza e falta de contrição dos discípulos: não faltam Pedros que o neguem três vezes; nem Judas que o vendam para serem politicamente correctos. Na vida pública falta, sobretudo, quem tenha a valentia de um José de Arimateia, ou de um Nicodemos que, quando todos os outros se escandalizaram do seu Mestre, diante de aquele que, tendo condenado à morte Jesus, também os poderia mandar crucificar, assumiram, sem medo, a sua fé cristã.