Fica-se frequentemente intrigado como acontecimentos com pessoas e factos de grande peso nacional passam pelo desinteresse dos media portugueses. Foi agora o caso com uma das mais relevantes figuras do mundo do Direito contemporâneo nacional e europeu.

Acresce que José Luís Vilaça é um personagem explosivo na sua inteligência, leveza e sentido de humor, escapando de tal modo ao figurino bisonho do universo do Direito, que teria sido, e é, garantia de sucesso em prime time para os mais inspirados e melhores entrevistadores da televisão (Vítor Gonçalves, Piers Morgan, Larry King, Jean-Jacques Bourdin, por exemplo), e de notícias de primeira página dos jornais de referência. Homem culto, erudito, extrovertido, comunicativo, alegre, expansivo, multilingue, deveria fazer as delícias dos que se interessam por portugueses heróis do mundo, de Ronaldo a António Damásio.

De tal forma, que uma boa metáfora seria dizer que os europeístas convictos estariam já a planear peças estatuárias deste herói para as colocar nas praças dos centros das cidades dos 27, de Lisboa a Riga, passando por Bruxelas e pelo Luxemburgo. Um exagero divertido e justo.

Mas que José Luís Vilaça, um dos pilares mais sólidos da construção europeia, que dedicou a sua mente brilhante e a sua vida à elaboração de elementos fundamentais da essência do verdadeiro Estado de Direito que se pretende seja a Europa, devia ser glorificado com toda a pompa e toda a circunstância, sim, devia.

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Devia, e aconteceu, apesar de os media não se terem apercebido de tal festival. Foi o Liber Amicorum, contendo textos referentes ao trabalho de José Luís Vilaça e sujeitos ao título Building the European Union.

Liber Amicorum, na construção da União Europeia

Que mais monumental prestígio, pompa e circunstância pode ser dado a alguém do que a publicação de um Liber Amicorum, Livro dos Amigos, a mais perene e erudita homenagem académica dedicada a esse alguém? Que melhor forma se pode encontrar para exprimir veneração, admiração e respeito pelas qualidades intelectuais e humanas de uma pessoa, do que conseguir registá-las de forma estruturada sob a expressão da verdadeira e genuína virtude da amizade num Liber Amicorum, Livro de Amigos?

Pois bem, foi no Grémio Literário, em Lisboa, que o herói se viu há dias contemplado com tal troféu.

A Marcelo Rebelo de Sousa nunca ouvi um discurso tão inspirado, tão espontâneo, tão genuíno, como nesse dia. Sem um papel, num francês irrepreensível, o Presidente da República sublinhou a alegria de viver do homem extrovertido, mas tímido, nos seus 77 anos de juventude eterna, no seu fino e geométrico intelecto, o cultor exímio da aequitas no seu perfil pedagógico do exercício da Justiça. E, sobretudo, ao acentuar a entrega do galardoado à essência do sonho europeu, no enquadramento do Direito e na execução da Justiça com letra maiúscula. Foi divertido ouvir Marcelo a colocá-lo nas épocas e nas paixões do realizador François Truffaut, e a encaixilhá-lo, não no quadrado do raciocínio escuro, frio, longínquo e enfadonho que predomina no mundo do Direito, mas situá-lo no centro do vulcão, no coração da fogueira da Justiça europeia, e das leis e tratados que têm a pouco e pouco, e a duras penas, construído a União.  Justamente, o Presidente lembrou que em Coimbra, Lisboa, Paris, Bruxelas, no mundo, e até no cinzentismo do próprio Luxemburgo, o trabalho incessante de Vilaça trouxe dinâmica colorida, transparente, clara, concisa, na construção da Justiça, da lei e da jurisprudência europeias.

E assim, fora do baralho de condecorações indevidas e polémicas, Marcelo premiou José Luís Vilaça com a Grã-Cruz da Ordem de Instrução Pública, reconhecendo, no entanto, que era pouco, pois acha que ele está tão jovem, que tem a certeza que outros Presidentes vindouros o irão ajoujar atempadamente com berloques mais expressivos.

Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública. Desde a instituição da Condecoração, em 95 anos foram atribuídas cerca de 110

Claro que tudo é político, mas foi interessante ver que o que aconteceu no Grémio Literário não teve esse traço. E Paulo Portas, um animal político no apogeu do seu brilho intelectual, inspirado no universo europeu, seguiu essa linha com palavras e frases certeiras e magistralmente escolhidas, fato à medida para o reencontro e a homenagem ao seu amigo e compagnon de route nos mundos que ambos partilharam no CDS. Foram particularmente inspiradas ao qualificar a cordialidade de José Luís Vilaça, tanto na argumentação discordante como na concórdia, caso raro para quem usa de autoridade. Sim, quem lhe terá alguma vez visto exaltações alheias à razão e à precisão? perguntou Portas. Ninguém, pois as convicções solidíssimas resultantes do trabalho, do estudo, da ponderação, da sabedoria e do conhecimento infinito de Vilaça, foram os factores e razão de ser da suprema homenagem que é o Liber Amicorum!

Paulo Portas, como sempre exímio no uso da palavra, usou de expressões particularmente felizes, ao ir buscar ao nosso Juiz europeísta convicto, o culto da dúvida como condição da expressão da certeza, a sua matriz estável de valores fundamentais, e o seu perfeccionismo do detalhe, muito resultante da sua infinda biblioteca cerebral. Portas sublinhou também a racionalidade, razoabilidade e sobretudo humildade de alguém que o é mesmo quando se assumindo como fonte, como autor, como intérprete ou como participante. Ele é um Magistrado/Advogado que está na génese da nossa integração europeia, cuja pasta como Secretário de Estado abraçou com brilho quando iniciado o sonho de uma Europa Unida, integrada, e sem guerras. Creio que José Luís Vilaça foi muito bem qualificado como homem de pleitos que não cultiva conflitos acessórios, o aferidor milimétrico da consistência de um argumento, dotado de um sentido de humor e cordialidade que nunca lhe permitiram deixar adversários humilhados ou ofendidos, apesar de destroçados por este Mestre.

Em segundo plano, Paulo Sande, Bernardo Pires de Lima e Paulo Portas. Em primeiro, Marie Charlotte e José LuÍs Vilaça

Portas e Marcelo foram incontestavelmente brilhantes! Mas Marta Vilaça, segunda dos quatro filhos de José Luís, pediu-lhes meças, com a espontaneidade e graça do que se lhe ouviu, sem ler um papel. Enriqueceu a figura de seu Pai numas palavras impecáveis em português, francês e inglês, com expressões de surpreendente rigor linguístico para quem há muitos anos faz a sua vida em Nova York. Ao ir buscar a “força catalítica que catapultou” um homem que, a seu ver, nunca fez corta-mato (bela metáfora!), não se esqueceu de W. H Auden, e já a verter uma lágrima, citou: “You are my North, my South, my East and West/ My working week and Sunday rest…”.

O actual Juiz-Presidente do Tribunal de Justiça da União Europeia, Koen Lenaerts, tinha de estar presente, e foi ele que elencou a carreira ilustre de José Luís como Juiz e Autor de importante jurisprudência europeia e de leis portuguesas, com um percurso único e sem paralelo, pois foi ele o primeiro a ter assumido sucessivamente as funções de Avocat Général à la Cour (intraduzível: o Avocat é o Juiz que exprime a opinião, de cariz público, de como a causa do Processo deve ser decidida pelo Tribunal); depois Presidente do Tribunal Geral da União Europeia, na verdade o Presidente fundador; e, finalmente, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça da União Europeia. Foram funções assumidas com autoridade e pragmatismo, sobretudo em muitos acórdãos de que foi Relator, em casos complexíssimos em que a sua assinatura foi a chave para acórdãos de alcance constitucional. Impressionante o rol de casos dessa dimensão que o Tribunal de Justiça da União Europeia julgou equitativamente e bem, em grande parte graças à decriptação e às reflexões de José Luís Vilaça, entre os quais se destacam o da Toshiba e Intel, da DHL Express e Post Danmark II, Georgsmarienütte, TWD Deggendorf, Baumeister, Taricco II, Scialdone, etc, etc.

Quisera o autor deste escrito assinar os bons adjectivos e substantivos que acima abundam. Mas não: Marcelo, Portas, Marta e Koen são os justíssimos titulares desses direitos de autor. O seu a seu dono.

Sempre que o encontro fico impressionado com a sua modéstia, juventude inultrapassável, acutilância, humildade, brilho. Como disse Paulo Sande nesta ocasião, José Luís Vilaça continua hoje, como no passado, ativo e interveniente, não só no escritório de Advogados que fundou após o seu regresso do Luxemburgo, mas também noutros augustos fóruns, uma voz respeitada em Portugal e na Europa, a intelligentsia completa ao serviço da construção e clarificação do Direito Europeu.

O Liber Amicorum, bom título para um filme, mereceria um Oscar para o melhor intérprete, se estivéssemos em Hollywood. Mas não estamos, e esta foi a maior condecoração de todas, que nem precisa de faixa, o testemunho do máximo respeito Académico, traduzida numa consagração eminentemente humanista para com o Mestre, uma tradição germânica aplicada aos insuperáveis, que vemos ser colocada como o mais brilhante galardão ao peito de um português de relevo no universo da consolidação europeia.

Já assisti a mil sessões de homenagem e reconhecimento, vestidas de outro tipo de pompa, a maioria de uma banalidade deprimente. Esta foi a mais luminosa e genuína ocasião deste tipo que encontrei, já que totalmente focada na fascinante essência das coisas e, sobretudo, da pessoa.

Notei a assombrosa ausência dos media numa Pátria que anda desesperada à procura de heróis, e que ali o teve de bandeja. Salvo as poderosas e enriquecedoras figuras de Marcelo e Portas que honraram brilhantemente a ocasião, reparei na ausência dos políticos de referência, clareira que permitiu uma atmosfera límpida, e dotada de invulgar leveza. Mas senti o vazio deixado por egrégios representantes de Instituições onde Vilaça presta inestimável colaboração pro-bono. E, salvo o desassombrado testemunho em vídeo de Carlos Botelho Moniz, um “concorrente” amigo, e as palavras calorosas de José Miguel Júdice, também em vídeo, reparei noutro vazio, o que foi o deixado por alguns dos nomes mais representativos da magistratura e da advocacia portuguesa.

O crème de la crème que apareceu em número elevado, sentiu a imponência e a oportunidade do que aconteceu. E essa plêiade iria querer, sem dúvida, participar com alegria numa procissão, com organização e custos a cargo (a título de multa) das sonoras ausências que se fizeram sentir, levando José Luís Vilaça num andor, num pagamento incontornável da dívida pelo contributo incomparável que ele traz ao tão abalado mundo lusitano da Justiça, e ao prestígio da Bandeira Nacional.