Em jeito de prólogo: a polémica atual de Espanha está associada ao rei emérito Juan Carlos I, uma figura relevantíssima para a construção da democracia, mas também deplorada por outros motivos. Fala-se, em alguns setores, que a própria manutenção da ordem constitucional espanhola está em causa: a saber, a monarquia.
Escrevo este texto enquanto neto e bisneto de sobreviventes da Guerra Civil Espanhola: não é só a escolha entre a monarquia ou a república em abstrato que está em causa. Independentemente de quaisquer pensamentos mais holísticos sobre o mérito desta ou daquela forma de Estado, aqui fica a história de Espanha, enquanto testemunho de que a monarquia é uma pedra angular na construção da democracia espanhola e na manutenção da paz social.
1Espanha é um país bonito, mas muito complicado.
Por detrás da beleza natural e do seu ar estival, da cultura milenar, da gastronomia, da movida, das praças de touros de Hemingway e dos próprios espanhóis, estão complexidades que não encontramos em Portugal.
É o caso das pequenas nacionalidades catalã e basca, que historicamente clamam por autonomia. Alguns comentadores mais azedos quanto ao centralismo, acusam Espanha de não existir como país, mas apenas enquanto nome dado à “extensão ilegal de Castela”.
Como qualquer bom país do Sul da Europa, tem também graves problemas económicos, que antecedem o coronavírus, e que estão em vias de se agravar (v.g., desemprego, fuga de licenciados, dívida pública, etc.).
Finalmente, também se tem de dizer que o país atravessou um conflito armado – a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) – tão fratricida, tão sangrento e tão destruidor que ainda se sente, hoje, profundamente na dinâmica e na alma do povo espanhol.
2 Como o próprio país, os espanhóis também são complicados – e, neste momento, acentua-se a complexidade patente na pessoa do rei emérito Juan Carlos I.
Para compreender Juan Carlos, temos de compreender o país e a situação que ele herdou. Em Espanha, o debate monarquia-república começa sobretudo no final do século XIX, especialmente entre as elites.
Espanha teve duas repúblicas: uma de 1873 a 1874 e a segunda, mais famosa, de 1931 a 1939. Para o efeito, diga-se que, por idiossincrasias próprias da sociedade espanhola quasi-feudal no final do século XIX e início do século XX, a agitação social era muita e os “pronunciamentos” apareciam como cogumelos.
Não interessa compreender afincadamente essa parte da História de Espanha para acreditar que, em 1936, começa uma Guerra Civil entre o campo nacionalista – primeiro de liderança incerta e depois assumidamente governado pelo Generalíssimo Francisco Franco – e o campo republicano. A ideia de que foi uma luta da monarquia nacionalista contra o republicanismo é desadequada e primitiva. Foi, fundamentalmente, uma reação do exército e das camadas conservadoras contra uma república de tendência crescentemente social-comunista. A título de exemplo, o General Miaja, cabecilha da resistência madrilena republicana, era um monárquico convicto: um “republicano monárquico”.
A Guerra Civil foi azeda: espanhóis bateram-se contra espanhóis com grande violência. Ninguém estava correto e a História não se pode esquecer disso em favor de uma leitura maniqueísta contemporânea.
Seja como for, Francisco Franco preparou o trono para Juan Carlos – neto do último Rei de Espanha, Afonso XIII. Fez por isso, sem pressas: ultrapassou Juan de Borbón, pai de Juan Carlos, porque temia a sua pendência liberalizante. Juan Carlos, em 1969, jurou a Lei de Sucessão franquista e preparou-se para um futuro regresso ao trono.
Depois disto, temos de compreender o papel de Juan Carlos na democracia espanhola.
Após a morte do Caudillo (1975), Juan Carlos torna-se oficialmente rei, a 22 de novembro de 1977. Começa a democratização espanhola e a reforma das estruturas do antigo regime. Em 1977, começa o processo legislativo democrático, no qual se destaca o Presidente do Governo Adolfo Suárez da UCD. Em 1978, a Constituição espanhola é aprovada por uma esmagadora maioria de 88 por cento. Consagra-se a figura do Rei e o Estado de Direito Democrático. Mas o caminho para o resto da Europa Ocidental democrática ainda não tinha terminado.
Isto posto, o papel e a atitude do Rei de Espanha revelam-se no dia 23 de fevereiro de 1981, quando há uma tentativa de golpe de Estado por parte de alguns elementos do exército (como nos pronunciamentos e em 1936!), descontentes com a possibilidade de ter um Presidente do Governo pertencente às “esquerdas”.
O tenente-coronel Antonio Tejero, um chefe militar com um chapéu de toureiro, assalta o Parlamento durante a votação para Presidente do Governo. Tiros para o ar. Militares ocupam o espaço. Quando pedem a Tejero para cessar o golpe, diz que só recebe ordens do rei.
Contudo, o eleito de Franco, o rei Juan Carlos I desautoriza o golpe: diz que não devem defender o Rei, mas a Constituição espanhola. O golpe ficou condenado ao fracasso e o monarca foi visto como um garante da Constituição e da democracia.
A partir de então, no entanto, os escândalos de Juan Carlos começam a atormentar o prestígio da família real.
A título de exemplo, alguns dos escândalos mais marcantes, embora de maneira simplificada demais para ilustrar corretamente a complexidade da figura:
- Mulheres: casado com Sofia, da família real grega, tem vários casos: com Barbara Rey, Corinna Larsen, Marta Gayá, e muitas outras, mais ou menos escondidas pela imprensa espanhola.
- Dinheiro: associada a estes anos, por exemplo, Corinna Larsen foi apanhada em escutas por ser beneficiária de uma doação de 65 milhões de euros feita por Juan Carlos, segundo o próprio, como “um sinal de gratidão e amor”.
- Caça: gastou grandes quantidades de dinheiro em viagens a África para caçar animais exóticos, o que não fica bem a um rei, nem pela atividade, nem pelo dinheiro dispendido, nem pelo sigilo com que fazia as viagens.
- O caso NÓOS: uma das filhas do Rei, a infanta Cristina, e o seu marido, Iñaki Urdangarin estiveram envolvidos num esquema gravíssimo, relacionado com desvios de fundos públicos para as empresas do genro de Juan Carlos. Ambos foram acusados de fraude fiscal e de branqueamento de capitais. O Rei cortou relações com a filha e Iñaki anda está preso. Mais um escândalo para a família real.
3 Em que ponto está o problema?
O último escândalo, após décadas de algum branqueamento da imprensa espanhola, foi a gota de água: o rei emérito Juan Carlos I, que abdicou do cargo a favor do filho em 2014, autoexila-se. Começam as conversas, nas ruas e no parlamento espanhol.
Como não podia deixar de ser, houve quem se destacasse no ataque à monarquia em Espanha. Por um lado, Pablo Iglesias, Secretário Geral do partido de extrema-esquerda Podemos, que não deixou passar a situação sem fazer críticas. Não obstante ter deixado o seu republicanismo militante para trás, para fazer parte do Governo através da coligação “Unidos Podemos”, Iglesias publicou um tweet em que dizia que a atitude de Juan Carlos tinha deixado a monarquia numa “situação muito comprometida”. E, por outro lado, os independentistas. Com maior frontalidade, os independentistas catalães desafiaram a ordem constitucional através das palavras de Joaquim Torra, líder do Governo Regional, que falou numa “crise aberta da democracia”. Além disso, a autarca de Barcelona Ada Colau, perante os escândalos de Juan Carlos, já tinha publicado no Twitter uma chamada ao #ReferendoRepublicaJá.
Com maior ou menor frontalidade, está claro que o cerco à família real começa a apertar, seja através de republicanos convictos ou de independentistas, que veem aqui uma oportunidade de dar um golpe na identidade da Espanha una.
Neste ponto, além do debate parlamentar, está em causa a discussão sobre a oportunidade da manutenção da monarquia. E essa é uma discussão perigosa. Este é o ponto menos relevante, mas não tenho dúvidas sobre as ideias que tenho assentes acerca do debate monarquia-república. Na Europa Ocidental, esta é uma discussão infrutífera. A saber:
- Não podemos falar do perigo de corrupção, porque há corrupção nos dois regimes;
- Não podemos falar em despesas, porque ambos gastam quanto baste;
- Não podemos falar de mais democracia, porque há democracia nas duas formas de regime;
- Não podemos falar da questão da distribuição do poder executivo – como aquando da Revolução Francesa e da queda do Estado Absoluto – porque o monarca europeu é hoje um acessório (em Espanha, no Reino Unido, na Dinamarca, na Suécia, etc.).
Não tenho dúvidas de que os vitupérios que se vão lançando contra a monarquia espanhola acabam por brotar de um certo dom-quixotismo dos maiores ideólogos republicanos: a monarquia enquanto instituição, se não for nada de bom, também não será muito mais do que um moinho de vento à maneira de Cervantes.
E não é esse o aspeto cardeal da questão. A monarquia espanhola não é uma monarquia, mas a monarquia espanhola, enquadrada no tempo e no espaço. Ora:
- No início dos anos 80, o rei Juan Carlos foi um garante da democracia – e sem ele não sabemos como estaria Espanha agora. Isto, note-se, tem menos a ver com o rei emérito do que com a instituição de Rei, em abstrato.
- Não se trata de manter nenhuma ordem que agrade apenas a algumas forças mais obscuras, nacionalistas ou conservadoras (ver o caso do republicano monárquico General Miaja). A monarquia espanhola, ao contrário de um qualquer saudosismo extemporâneo, existe como símbolo da democracia e da Constituição espanhola.
E além destas duas notas, também é claro que a derrota da monarquia e da identidade espanhola é uma vitória para os ânimos independentistas. Mas isso é uma questão, não menos grave, mas à parte.
4 O ponto central será, portanto, este: a constituição monárquica espanhola, pelas suas especificidades históricas, consagra uma instituição que recentemente serviu como pedra angular da sua democracia. Por esta lógica, parece claro que Espanha aproveita da existência do rei enquanto instituição constitucional – e que tanto melhor funcionará a instituição quanto a dignidade da Casa Real (que está em situação de convalescença).
Outra questão será – e esta merece uma resposta categórica e célere – o que acontece à pessoa do rei emérito? Não obstante a imunidade (ou, com maior frontalidade, a verdadeira impunidade) que a Constituição espanhola consagra ao rei quanto a atos praticados durante o seu mandato, ninguém deve estar acima da lei.
Mas, como fica claro, isso são ilações a tomar quanto à pessoa do rei e não quanto à instituição.
Sobra a questão: será que a Zarzuela resiste aos novos anos 20?