A ameaça de uma segunda Itália em Portugal está cada vez mais evidente. No momento em que escrevo isto há 59 casos confirmados. Quem está a ler quase certamente está a pensar: “Onde isso já vai…” Já se suspenderam as atividades presenciais em algumas escolas e universidades, já há clubes desportivos a fechar, jogos à porta fechada, etc.

Onde é que entra a União Europeia aqui no meio? Ora bem, nós sabemos o que a União Europeia é: é mais do que uma organização internacional, mas menos do que um Estado. Foi criada para existir paz na Europa, foi desenvolvida para a melhorar: mais liberdade, mais harmonização de leis, mais mercado comum na Europa, mais qualidade de vida do cidadão europeu.

O que a União Europeia poderia – deveria – ter a ver com o surto de COVID-19 está, precisamente, relacionado com o seu papel de super-organização internacional. Os Estados concederam-lhe uma série de atribuições – entre as quais a saúde pública, que partilha com os Estados-Membros – e nós esperamos que a União aja de acordo com as suas atribuições.

Se a União não age quando precisamos, qual é o sentido do projeto europeu? A União tem agido?

Há dois problemas principais relacionados com a epidemia de COVID-19. A saber:

  • Saúde pública
  • Economia

As ameaças à saúde pública todos compreendemos. Neste momento, todos os países da União Europeia têm casos confirmados. Os casos tendem a aumentar e, concomitantemente, as mortes. O período de incubação é muito longo e é evidente o perigo que um assintomático pode ter na difusão de um vírus, nomeadamente para os mais vulneráveis à doença: os mais velhos e os que têm condições prévias associadas ao sistema respiratório. É verdade que uma em cada quinhentas – 0,2% – das pessoas até aos 39 anos pode morrer de COVID-19, em média e segundo dados do Público; mas também é verdade que uma em cada seis – 14,8% – das pessoas com mais de 80 anos podem morrer da doença. A tendência é evidente e deve preocupar quem tem familiares mais velhos.

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O efeito que o COVID-19 tem na economia pode ser menos evidente, mas pode ser explicado muito facilmente. Um dono de um negócio pode ter de suspender a atividade do seu empreendimento por questões de saúde pública. Por um lado, o risco de infeção dos seus empregados e do próprio minora muito; por outro lado, não ganha nada durante a quarentena.

O valor da vida está, evidentemente, à frente do valor do dinheiro: uma vida não é fungível. Mas o que fica em causa também não é pouco: a possibilidade de o negócio abrir falência, ao lado de muitos outros; a possibilidade de não termos conseguirmos adquirir uma série de bens e serviços, talvez de primeira necessidade, durante o hiato da quarentena; a possibilidade de os trabalhadores não receberem os devidos e necessários salários para subsistir. Não se pode negar: em situações como estas, o Estado tem de agir.

Toda a ação que a União Europeia tome não pode ser tomada arbitrariamente: alguns domínios são partilhados com outros Estados. Nesses domínios, a ação da União tem de ser subsidiária: em termos simples, se um Estado conseguir fazer melhor mais perto dos cidadãos, a União não age. A União só age se e na medida em que o Estado não consiga tomar uma atitude necessária.

Esta ideia de subsidiariedade é curiosa. Os problemas mais evidentes do COVID-19 devem ser resolvidos pela União? E em que medida?

Temos uma série de problemas, no paradigma atual, nomeadamente relacionados com a economia e com a saúde.

A recente Presidente da Comissão Europeia Ursula Van der Leyen tem agido últimos dias. Já antes de fazer parte da Comissão Europeia deixava bem claras as suas intenções: o combate às alterações climáticas. Políticas jovens comandadas, em particular, por uma juventude que não está tão alienada da política quanto se tende a dizer. Mas e em matéria de saúde pública?

A Comissão Van der Leyen já se pronunciou sobre algumas questões. Mas foi em matéria de saúde pública?

Importa dizer que se tem preocupado com os chamados ghost flights: os voos sem passageiros. Como se sabe, o setor da aviação tem sido dos mais afetados pela crise do COVID-19, pelo medo das transmissões. Bruxelas reagiu e suspendeu as regras europeias que impediam que companhias aéreas cancelassem os ghost flights. A medida é orientada, nomeadamente, para ajudar a economia, através das companhias de aviação, e o ambiente, para reduzir as emissões dos voos. Para a saúde pública? Não.

Outras medidas também têm sido feitas, nomeadamente relacionadas com a economia. Tudo o que pudesse ser uma ação mais direta por parte da União Europeia relacionada com saúde pública tem sido, na verdade, deixado para as mãos dos Estados.

Ainda assim, pode-se falar do grande Fundo de Investimento de Resposta que a Comissão Europeia pretende atribuir aos Estados-Membros: 25 mil milhões de euros para a economia e, nomeadamente, para os sistemas de saúde, crescentemente em risco de colapso.

Outras iniciativas incluem:

  • Colaboração com autoridades europeias para distribuir dados relacionados com o COVID-19, sendo que a Agência Europeia de Prevenção e Controlo das Doenças pode ter um papel relevante nesse sentido;
  • Promoção da discussão de controlo de fronteiras internas e externas dos Estados no âmbito de algumas instituições da União – o que, inevitavelmente, é uma competência dos Estados-Membros e não da União;
  • Avaliação da situação por parte das autoridades do Banco Central Europeu.

A questão é a seguinte: todas estas ações são mediatas e passam inevitavelmente pelos Estados. A União Europeia tem muito pouco papel substancial – o que pode e deve ser escrutinado.

Temos, então, um claro desfasamento entre o papel que a estrutura da União teve na difusão da doença e, por outro lado, o papel que a União deveria ter no controlo da mesma doença. A saber:

  • Por um lado, vivemos num continente sem fronteiras – e ainda bem –, mas onde elas não estão, não se pode controlar o fluxo de infetados que voa de Itália para Portugal, de Espanha para França, e assim sucessivamente. Portugal em particular tem beneficiado muito da liberdade de circulação no espaço Schengen (nomeadamente pelo relevo do turismo na nossa economia); mas essa liberdade de circulação também contribuiu para o efeito de difundir a doença.
  • Por outro lado, a União Europeia não tem tido o destaque adequado no combate ao COVID-19. Todos os países da União Europeia já estão infetados; mas, mesmo que estivesse apenas um, o problema já teria relevo europeu, devido à inexistência de fronteiras entre nós. Se um país da União Europeia tem um problema epidémico, todos os países da União Europeia têm o mesmo problema de forma mediata, pelo menos. Isso, claramente, pede que a União Europeia tome uma atitude que seja igual e eficaz para todos os Estados-membros, pelo menos enquanto os países não estão todos de quarentena e com as fronteiras totalmente fechadas.

A União Europeia tem um papel muito relevante nas nossas vidas. Tem muita importância em domínios como a segurança e o comércio. Mas e, portanto, a saúde pública?

A ideia, em suma, é simples: o paradigma atual, aos olhos daquele problema todo da subsidiariedade e da ação da União e dos Estados, pede, sem dúvida, uma ação conjunta de todos os Estados-Membros. Num espaço sem fronteiras e com liberdade de circulação, um país não está livre de perigo sem que todos os outros o estejam.

Faz todo o sentido a ação da União. O projeto europeu deve ser desenvolvido no sentido de a União Europeia agir em tudo o que seja bom para nós, os seus cidadãos.

Será que a União vai agir para nos proteger? Se agir, e se agir corretamente, será que os Estados conseguem aceitar?