Na manhã de 9 de abril de 1918, pelas 04h15m, foi desencadeada uma tempestade de ferro e fogo no setor anglo-português da frente da Flandres, que só terminou no dia 29 desse mesmo mês, com mais de 200 mil baixas entre combatentes aliados e alemães. Os portugueses ainda resistiram ao primeiro assalto, mas, no final da manhã do dia seguinte, os batalhões de infantaria 13 e 15, que defendiam o setor de La Couture, acabaram por soçobrar.
A quarta batalha de Ypres, que ficou conhecida, para os portugueses, como a batalha de La Lys, rio que nasce na Flandres francesa e desagua no rio Escalda, na Bélgica, está gravada na nossa memória coletiva, juntamente com os topónimos de Richebourg, La Couture, Laventie, Fauquissart, Neuve Chapelle, Ferme du Bois e Armentières. Estes lugares dão nome a ruas de cidades portuguesas, estão inscritos nos monumentos evocativos da Grande Guerra e fazem parte dos nossos livros de história.
O vínculo dos municípios de Richebourg e de La Couture a Portugal deriva do facto de ter sido nesta região que o Corpo Expedicionário Português se bateu, lado a lado, com os aliados britânicos e franceses. Quando, em 1917, os portugueses ali chegaram, já os franceses sofriam, há três anos, os horrores da guerra. Tinham lutado pelo seu país e perdido muitos dos seus filhos em combate, haviam sido vítimas da violência, da fome e do frio, e muitos tinham sido desalojados.
No solo de Richebourg repousam os restos mortais de milhares de jovens que, há pouco mais de um século, deram a sua vida pelos ideais de paz e liberdade que norteiam o nosso modo de vida. Junto ao cemitério português, finalizado em 1935, que acolhe 1831 sepulturas, encontra-se o memorial indiano da Commonwealth, com 4847 nomes inscritos no mural de pedra. Um pouco mais afastado, o cemitério de Festuret é terra de repouso final para 1017 combatentes e o de Le Touret para 900, todos britânicos. A lista de cemitérios militares é extensa, não só em Richebourg, mas em quase todos os municípios vizinhos, da região Nord-Pas-de-Calais, constituindo-se como uma memória perene do conflito que se destinava “a acabar com todas as guerras”.
As perdas nacionais durante a Grande Guerra ascenderam a quase uma dezena de milhar de homens. No entanto, a batalha de La Lys representa o episódio mais dramático para os portugueses, pois ali, em poucas horas, 1300 soldados perderam a vida, 4600 ficaram feridos e mais de 7000 foram feitos prisioneiros, tendo ainda sido dados como desaparecidos em combate cerca de 2000.
Após o Armistício, de 11 de novembro de 1918, alguns militares portugueses permaneceram na região, onde constituíram família. Por isso, naquele recanto de França respira-se Portugal, e é possível testemunhar o enorme carinho e reconhecimento que os habitantes locais nutrem pelo nosso país, bem como o modo como as autoridades francesas, civis e militares, valorizam o contributo de sangue oferecido pelos jovens portugueses há 104 anos.
Prova desse elevado apreço é o monumento erguido defronte da igreja de La Couture, esculpido por António Teixeira Lopes e inaugurado em 1928. Nele encontramos, num comovente dramatismo, três figuras de bronze, sobre as ruínas de uma igreja gótica. No patamar superior, a figura feminina da Pátria Portuguesa brande a espada de Nuno Álvares e incentiva, com emoção, o soldado português que, num esforço heroico, luta contra a morte envolta no manto da tragédia.
Ainda que inconscientemente, muitos dos militares portugueses que deram a vida na batalha de La Lys fizeram-no pela paz e pela liberdade. Por isso, quando os homenageamos, agradecemos a todos os combatentes da Grande Guerra as tormentas passadas na defesa daqueles ideais que, ainda hoje, apesar de recorrentemente desafiados, como os acontecimentos recentes na Ucrânia evidenciam, constituem o esteio irrefutável da nossa civilização.
Dar a vida pela Pátria constitui a mais séria e profunda súplica que uma nação pode endereçar aos seus cidadãos. Ontem, como hoje, os combatentes acreditam que o sacrifício das suas vidas vale bem a esperança de alcançar a paz e garantir a liberdade das suas gentes. Ontem, como hoje, a abnegação, que sintetiza a entrega total de um militar à sua missão, só é possível com lealdade, honra, disciplina, integridade e coragem.
Por vezes adormecidos na tranquilidade das nossas sociedades ocidentais, estes valores fazem pleno sentido e prevalecem vivos no seio das Forças Armadas, constituindo estas, por isso, não só um dos instrumentos da soberania e a garantia última da independência nacional, mas também uma verdadeira escola de cidadania. Com efeito, assim acontece porque a aprendizagem e a prática contínua daqueles valores são essenciais para podermos ter militares com condutas dignas e patrióticas no exercício das suas funções, sobretudo nas mais exigentes e complexas no campo de batalha.
Depois do Armistício desejámos ardentemente ser possível manter a paz e garantir a liberdade, resguardando uma parte significativa da nossa juventude do ofício das armas.
O século que se seguiu demonstrou que a paz e a liberdade se podem preservar com o esforço coletivo, respeitando as diferenças, cultivando a tolerância, promovendo o diálogo e garantindo a justiça. Contudo, também evidenciou existirem circunstâncias em que combatentes leais, honrados, disciplinados, íntegros e corajosos, como os portugueses que se bateram abnegadamente em La Lys e que hoje homenageamos na Batalha, são indispensáveis para que o povo possa viver em segurança e escolher os caminhos para o seu futuro.