Um dos problemas com que Portugal se debate, seguramente um dos mais importantes, é o nível baixo dos salários médios, especialmente o dos jovens e mesmo daqueles que têm qualificações elevadas. (numa comparação com os demais países da União Europeia: “Enquanto, na década de 1990, o salário médio real dos trabalhadores por conta de outrem cresceu em média 2% ao ano, desde 2000 cresceu apenas 0,6% por ano. Em paridade de poder de compra, em 2000, os Portugueses recebiam em média 86,6% de um trabalhador europeu. Os dados mais recentes indicam que este valor, em 2018, desceu para apenas 72,3%.” – Pedro Brinca, “Como trabalham os portugueses”)
Este problema é ampliado, na sua visibilidade e efeitos, pelo facto de Portugal estar integrado na União Europeia, pois essa integração, pela facilitação que introduz da circulação e inter-relacionamento entre a população dos países da UE, em particular entre os mais jovens, faz com que a comparação entre salários de Portugal e os outros países da UE seja mais frequente e, sobretudo, com que os portugueses tenham ao seu dispor a opção de simplesmente atravessarem a fronteira para trabalharem em países com salários mais altos.
O problema tem os efeitos conhecidos: “fuga” dos mais aptos, sobretudo os mais jovens, de Portugal para os países da União com melhores salários; perda inerente para a economia portuguesa, que, ainda para mais, gastou recursos para formar esses jovens; isto formando um círculo vicioso: essa perda de recursos humanos de qualidade contribui para um empobrecimento do país, indutor de mais ciclos como o acima descrito. Poder-se-ia dizer que esta “fuga” de quadros portugueses traduz apenas uma maior abertura da sociedade portuguesa face ao mundo. Mas, se fosse assim, deveríamos simultaneamente observar a entrada de quadros jovens estrangeiros. Só que o que se observa é a dificuldade de as nossas empresas atraírem talento estrangeiro.
Habitualmente diz-se que uma das principais causas do problema dos baixos salários médios em Portugal, senão a principal, é a menor produtividade dos trabalhadores portugueses, quando comparados com os de muitos das suas congéneres da UE. Por exemplo, para o ano de 2020, a Pordata indica que a produtividade do trabalho por hora trabalhada é de 42,1 euros para a média dos 27 países da UE, enquanto que é de 27,1 euros em Portugal (Também segundo a Pordata o trabalhador português trabalha, em média, dados de 2019, 36 horas por semana versus 31 na UE/27 e tem um salário médio de 1170 euros, dados de 2018).
Estas afirmações resultam normalmente de análises com algum grau de simplificação/abstracção. São muitas vezes suportadas em ratios que resultam da comparação do PIB de um país com o número de horas trabalhada ou, a um nível mais micro, o valor das vendas da empresa (ou o seu lucro) com o número de horas trabalhadas. Só que, como se sabe, este tipo de ratios não permite captar e medir de forma adequada a produtividade do trabalho em sentido estrito, isto é no sentido da capacidade e desempenho de cada trabalhador, pois na base dos parâmetros usados para calcular esses ratios (seja o PIB, seja o volume de vendas/lucro de uma empresa) estão muitos outros factores, como os ligados à organização das empresas, à sua escala, à sua evolução tecnológica, a custos de contexto, etc.
Portugal começa a ter, nas gerações mais novas, uma qualificação dos seus recursos humanos próxima da dos seus congéneres europeus. Isso é, aliás, sinalizado pelo sucesso e reconhecimento que os portugueses que vão trabalhar para fora normalmente têm nos mais variados sectores de actividade, incluindo os sectores de ponta.
(Em 1998, a repartição da formação dos trabalhadores portugueses entre formação básica, secundária e superior era, respectivamente, de 80%/11%/9%. Em 2019 era de 43%/29%/28%. O quadro ao nível dos empregadores não é muito distinto – ver nesse sentido o Estudo da AEP intitulado “Do Pré ao Pós Pandemia – Os Novos Desafios, 2022, pág. 64. Este progresso em termos de qualificação dos trabalhadores e empregadores tem especial impacto nas gerações mais novas, pois as baixas qualificações concentram-se nas gerações mais velhas (acima dos 45 anos). Esse facto, conjugado com o envelhecimento da estrutura etária da população faz com que a convergência do nível da escolaridade média com a União Europeia seja ainda um objectivo a alcançar. Neste sentido, Pedro Brinca, ob. cit., pág. 26: “Um dos fatores que contribuem negativamente, ou pelo menos para a menor velocidade de convergência dos níveis de escolaridade média em Portugal com os restantes parceiros da União Europeia, é o envelhecimento da população. Enquanto, no início da década de 1990, a população empregada com 45 anos ou mais representava apenas 35,3% do total, esse número, em 2018, tinha subido para 47,8%. Dado as gerações mais velhas terem em média menor grau de escolaridade, o aumento do peso desta população limita o aumento da escolaridade média.”.)
A pergunta que então nos surge é esta: será que a menor produtividade dos trabalhadores portugueses face aos seus congéneres da UE não tem a ver (pelo menos exclusivamente) com as suas capacidades e desempenho mas com outros factores? Ou seja, a hipótese que ponho em cima da mesa é a de que, deixando de lado, naturalmente, casos contados, que seguramente existirão, o problema da menor produtividade dos trabalhadores portugueses e do consequente baixo nível dos seus salários não reside tanto ou só na produtividade dos trabalhadores em si mesmos, mas na produtividade das empresas, entendida como a sua capacidade de gerar mais lucros com os recursos de que dispõem (e, depois, de os distribuírem de forma justa entre remuneração do capital e salários).
A produtividade das empresas portuguesas é afectada por muitos factores externos ou de contexto. Entre outros:
- a carga fiscal e parafiscal é muito pesada;
- embora tendo conhecido algumas melhorias nos últimos anos, o funcionamento de algumas funções do Estado (vg justiça) ainda deixa algo a desejar quanto à sua tempestividade;
- algumas redes de transportes, como o ferroviário, são más;
- a actual fase de transição para uma energia sustentável, em que Portugal está na linha da frente, conduz a custos de energia consideráveis;
- falta um mercado de capitais eficiente e que consiga sair do cenário de constantes alterações regulatórias e custos exagerados;
- e, last but not least, o país enfrenta uma gravíssima crise de natalidade/demográfica, que tem projecções aos mários diversos níveis da economia.
Muito há a fazer nesses domínios, a começar pelo acima referido da carga fiscal, cuja redução passa, naturalmente, por um esforço de redução da despesa pública e, como consequência, por o Estado fazer menos “coisas” ou, pelo menos, fazer o que faz de forma mais eficiente.
É verdade que o Estado deu, recentemente, um passo relevante, para os mais novos, ao criar um regime de isenção parcial de IRS, designado “IRS Jovem”. Mas penso que não é suficiente. Efectivamente, de acordo com as estatísticas da OCDE, Portugal continua a estar mal classificado entre os países dessa organização naquilo que é habitualmente designado por tax wedge (em termos simples, a diferença de valor entre o que a empresa gasta com salários e contribuições com o trabalhador e o que este efectivamente recebe). No relatório “Taxing Wages” da OCDE de 2022, Portugal apresenta o décimo tax wedge mais alto em 38 países
Sem prejuízo do que escrevo nos parágrafos seguintes, mais passos são necessários, portanto, do lado do Estado: um deles, poderia ser o que Espanha deu há muitos anos – limitar/”plafonar” o valor da pensão de reforma paga pelo sistema público de segurança social e, com isso, conseguir reduzir a contribuição do trabalhador para esse sistema, aumentado o valor do seu salário líquido.
A produtividade das empresas portuguesas é, ainda, afectada por uma baixa taxa de investimento (incluindo baixo investimento directo externo na indústria ou em sectores de investigação e desenvolvimento e IT), o que conduz a bases de capital baixas e, consequentemente, a um baixo stock de capital por trabalhador.
Mas, para além dos factores externos ou de contexto acima referidos, seguramente que a menor produtividade das empresas portuguesas face às suas congéneres europeias resulta também de factores internos. A eficiência da gestão dos recursos que têm ao seu dispor, a escolha dos produtos a produzir, a requalificação e formação contínua dos seus gestores e colaboradores (Segundo Pedro Brinca, ob. cit. págs. 15-16, “(…) a requalificação dos trabalhadores, mesmo ignorando o efeito da automação, só por si traria ganhos de produtividade aos mais diversos sectores da economia portuguesa, o que resultaria em aumentos salariais. Em média, um trabalhador com o ensino superior, em 2018, ganhava mais aproximadamente 70%, ou 758 € mensais, que um trabalhador apenas com o ensino secundário.”), a capacidade dos sistemas de informação de gestão proporcionarem informação actualizada e adequada, a automação, o adequado equilíbrio entre capitais próprios e alheios, as decisões sobre o correcto dimensionamento da empresa e sobre eventuais fusões que se tornam necessárias, etc., são factores que, se melhor geridos, seguramente permitiriam uma maior produtividade. (Sobre a correlação entre dimensão das empresas portuguesas e produtividade, vide o Estudo da AEP intitulado “Do Pré ao Pós Pandemia – Os Novos Desafios, 2022, pág. 68)
As empresas já têm, naturalmente, um incentivo para procurar melhorar todos os factores acima referidos. Chama-se necessidade ou instinto de sobrevivência. Mas, por vezes, para se alcançar saltos qualitativos, são precisos choque externos. Esses choques externos podem induzir uma dinâmica de melhoria da produtividade das empresas que, de outra forma, não seria alcançada e são, por essa razão, choques virtuosos e, a meu ver, e na medida em que não sejam, em si mesmos, maus (como uma guerra ou uma catástrofe natural), são defensáveis. Um exemplo é o que o cenário de taxas de juro negativas representou para a indústria bancária: forçou os bancos a tornarem-se mais eficientes para manterem a rentabilidade nesse cenário adverso.
É aí que chegamos ao título deste artigo, à hipótese de a subida do salário mínimo representar um choque virtuoso.
O aumento de forma bastante relevante do salário mínimo pode, na hipótese que formulo, ser um desses choques externos virtuosos: obrigará/incentivará as empresas a rever os factores internos que acima descrevi, a tornarem-se, por aí, mais eficientes e produtivas10 e, assim, a criarem condições para proporcionarem um aumento sustentado dos salários médios em Portugal, atenuando o problema de que falei no princípio deste texto. Enfim, um choque, mas um choque que, desde que acompanhado por algum esforço do Estado na melhoria das condicionantes externas que acima enumerei (vg de uma redução da carga tributária/redução do tax wedge e de uma redução das contribuições dos trabalhadores para a segurança social), poderá permitir a Portugal quebrar o círculo vicioso que acima identifiquei e evitar que nos mantenhamos mais pobres do que o resto da Europa. Entre outras medidas. Com uma ampla análise dos problemas e de propostas para reduzir os custos de contexto da economia portuguesa, bem como com um outro conjunto de propostas dirigidas ao crescimento sustentável da economia portuguesa, ver o já acima referido relevantíssimo estudo da AEP
Eu sei que a hipótese que acima formulo não é consensual, seja no plano da ciência económica, seja no plano político. E tenho presente, pelo menos, duas potenciais importantes objecções à mesma: uma é a que afirma que a subida do salário mínimo pode, pelo menos no curto prazo, ter algum efeito negativo no nível de emprego; outra é a que alerta para que a subida do salário mínimo pode não alcançar o efeito desejado de aumento dos salários ao longo de todo o espectro salarial (“empurrando” todos os salários para cima) mas antes conduzir a um “achatamento” da distribuição dos salários.
Não é, porém, aquilo para que aponta o recente (17.12.2021) estudo de Carlos Oliveira, intitulado “How is the Minimum Wage Shaping the Wage Distribution: Minimum Wage, Spillovers, and Wage Inequality in Portugal”. Aí pode encontrar-se a referência à literatura económica que não tem detectado um efeito especialmente relevante do salário mínimo em termos de geração de desemprego (pág. 9). Mas, sobretudo, aí se mostra como o aumento do salário mínimo, sendo um poderoso factor de redução da desigualdade da distribuição salarial (com especial relevância para o salário das mulheres), tem “spillover effects”, ou seja, efeitos que se projectam nos demais salários “Between 2006 and 2019, the remarkable rise in the real minimum wage was responsible for virtually all of the decrease in wage inequality in Portugal (…). More, the minimum wage was not only able to structurally reshape the wage distribution, but it actually shifted it to the right, explaining 40% of the in- crease in the Portuguese average wage over that period.”
Para uma análise dos efeitos (que têm alguma expressão) no nível de emprego da significativa subida do salário mínimo de 2019 em Espanha, ver estudo do Banco de España “Los efectos del salario mínimo interprofissional em el empleo: nueva evidencia para España”. Claro que não se podem extrapolar facilmente conclusões de outro mercado para o português, dadas as diferenças circunstâncias económicas e sociais. Veja-se, só, por exemplo, o ponto, referido no relatório em causa (pag 14), de o ratio entre o salário mínimo e o salário médio ser (dados de 2018) muito diferente entre Portugal e Espanha: “Por ejemplo, si se compara el SMI con el salario mediano de los trabajadores en empresas de diez o más trabajadores, en España se sitúa en el 53 %, por encima de países como Alemania, los Países Bajos y Bélgica (donde esta ratio se situaría cerca del 45 %), algo por detrás de Francia (59 %) y bastante alejada de Portugal (que, con un 73 %, es el segundo país del AE con mayor SMI relativo).”
Voltando à hipótese que coloco em cima da mesa, é a de que, acompanhada por medidas complementares adequadas (incluindo o referido esforço do Estado para ser mais eficiente e reduzir os custos de contexto) os problemas para que apontam essas objecções poderão ser ultrapassados e de que, portanto, a subida do salário mínimo pode vir a ser, indirectamente, um factor indutor de aumentos de produtividade. Isto para além de outros “spillovers” e dinâmicas positivas que resultarão para a economia na medida em que se gere um aumento mais generalizado de salários. Entre outros, mencione-se o contributo para um aumento da cultura de risco, essencial para a iniciativa empresarial e o investimento (vg, no mercado de capitais, em acções), só possível num quadro de rendimentos que permitam criar almofadas de investimento (na linha do que resulta da teoria da motivação humana de Maslow, quando os salários não chegam para satisfazer as necessidades mais básicas, não há disponibilidade nem vontade de passar à satisfação de outras necessidades (neste caso, tomar riscos e investir). Esse aumento da cultura de risco, da iniciativa empresarial e do investimento permitirão, por sua vez, aumentos de rendimento que alimentarão de novo este círculo virtuoso, por oposição ao ciclo vicioso de baixos salários – baixos rendimentos – baixa cultura e apetência para o risco – baixos retornos – baixos salários.
Independentemente, porém, de se concordar ou não com a hipótese acima formulada, o que entendo sobretudo é que o problema do nível baixo dos salários em Portugal é tão relevante para o futuro do país que valerá a pena que ele seja discutido a sério, pondo, sem tabus, todas as hipóteses em cima da mesa e contando com todos os contributos.
Ficar como estamos hoje, eternamente à espera de que a produtividade suba, deixando sair do país os mais qualificados e/ou não conseguindo atrair outros de fora com qualificações equivalentes, com isso agravando as condições de que depende aquela subida da produtividade, é que duvido que resolva alguma coisa.
Ficar como estamos hoje, sem conseguir promover e formar um consenso mínimo (um “pacto de regime”) acerca desta matéria (como, por exemplo, aconteceu, em alguns dos domínios referidos, em Espanha) é um caminho sem futuro.