No seu ensaio mais recente, Francis Fukuyama reedita, a régua e esquadro, Dr. Jekyll e Mr. Hyde, da autoria de Robert Louis Stevenson, de forma metafórica. Se, numa primeira fase, o autor reproduz e analisa a vertente filosófica, ontológica e material do liberalismo e do seu impacto ao longo do século XIX e XX, principalmente; peca, numa segunda fase, pela unipolaridade da crítica ao neoliberalismo como chave de resolução da progressiva desconexão e distanciamento do liberalismo em relação à sociedade, ao mesmo tempo que apresenta, assumidamente, apenas um conjunto de premissas vagas com vista a resolver o problema. Apesar do tour de force efetuado sobre o liberalismo enquanto ideologia, Fukuyama erra ao não prezar a ousadia e ambição das teses de outrora, condicionando a obra a uma substância pouco inovadora.

O liberalismo é, de forma progressivamente indiscutível para apoiantes e detratores, a ideologia mais marcante no panorama histórico-político a nível ocidental, e, de forma mais ampla, mundial. Com um início que pode ser traçado a Hobbes, segundo Rawls, a Locke e a toda uma tradição iluminista e racionalista do século XIX, foi, exatamente, a abrangência e universalidade dos princípios prescritos (e proscritos) que permitiu a construção e o desenvolvimento de um modelo demoliberal que marcará um longo século XIX de paz e prosperidade e que, conjugado com a introdução da proteção social e de uma intervenção temperada do Estado no século XX, exibe, na contemporaneidade, um modelo de referência para os países da esfera ocidental e, de forma mais vasta, a nível mundial. Ainda assim, e pese embora o desenvolvimento material e ideológico levado a cabo pelo liberalismo (em progressiva fusão com outras ideologias, como o conservadorismo), denuncia-se uma franja crescente de descontentes e de «portadores de outro modelo», nas palavras de Marine Le Pen, que mostram, à esquerda e à direta, fendas ameaçadoras de uma estabilidade notável e central às sociedades que implementaram alguns dos seus princípios mais importantes.

É nesse sentido que emerge a obra de Fukuyama, com o senso arguto de atualidade e pertinência que caracteriza o autor nipónico-americano e que dá conta – após uma prodigiosa análise filosófica da doutrina e da sua dimensão – desse mesmo descontentamento, das suas origens filosóficas (com Rousseau, Marcuse, Foucault) e da sua expressão na contemporaneidade, como consequência do neoliberalismo e como transversal a ambas as pontas do espectro político norte-americano, de forma mais acentuada, e mundial, no geral, numa abordagem que, apesar de denunciar instâncias malévolas associadas à penetração do radicalismo progressista e da teoria crítica, à esquerda, e da permeabilidade a teorias conspirativas em relação ao Estado, à direita, alega, de forma injusta, que a ameaça da primeira se apresenta mais suave do que a da segunda. É também nessa dimensão que Jekyll se começa a aproximar de Hyde e que Fukuyama perde, essencialmente, objetividade e direção em relação ao objetivo primeiro que o livro visou (ou visava) cumprir.

Além de uma dinâmica insuficiente de identificação desse descontentamento que serve de mote a este ensaio do cientista político residente em Stanford e John Hopkins, a principal objeção reside numa oferta intencional e dramaticamente abstrata e inconclusiva de soluções, escudada numa opção especificamente anunciada pelo autor e que serve um propósito pragmático que visa não abordar a questão mais premente no contexto desta questão. A renovação de um modelo demoliberal de amplo sucesso depende da reinserção do núcleo de descontentes que é abordado por Fukuyama, por forma a contrariar um movimento de sedução por parte dos extremos e por forma a cumprir um desígnio fundamental ao liberalismo de índole clássica defendido pelo autor – o da universalidade – e a ausência de respostas marca uma insuficiência crucial e deliberadamente pensada que condiciona o cômputo geral da análise bem conseguida de Francis.

Fukuyama é um autor de referência dentro e fora da área da ciência política, marcado por uma bibliografia brilhante e de referência no âmbito do liberalismo clássico e da ordem política, de uma forma abrangente. Mas a escolha de teses fáceis e pouco inovadoras marca uma rutura com o «Fim da História» de outrora, e, portanto, com a ousadia e pioneirismo que sempre o caracterizaram. Liberalismo e os seus Descontentes (Editora D. Quixote, 2022) presta-se a uma expressão desta nova opção que, pese embora o interesse filosófico indiscutível e a mestria e completude que sempre caracterizou a sua obra, apresenta grandes dificuldades em transpor a barreira material, autoconfinando-se a um espaço excessivamente restrito e que poderia (e deveria) ser expandido. Perde a doutrina. Perde a ideologia. Perde a sociedade. Ganham os Descontentes.

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