Não se ignora que, em face da emergência sanitária, económica e social que assola o País e o Mundo, o foco do espaço público e mediático esteja justificadamente centrado na auscultação de virologistas, intensivistas e especialistas em saúde pública. O momento reclama prioridade indiscutível à Saúde e aos cultores das ciências médicas. Também é sabido que, não raras vezes, o Direito é olhado como coisa de burocratas das leis ou como mero formalismo dispensável e não goza de boa fama também o sistema de justiça (lento, vetusto, gongórico). O descrédito do Direito e das suas instituições é apenas mais um sintoma evidente da nuvem negra que paira sobre o Estado de Direito (e temo bem que aqui não haja muitos inocentes).

Mais do que se possa pensar, contudo, a ausência de enquadramento jurídico sólido, claro e transparente, somada à tentação pela informalidade e pelo improviso, quando não pelo arbítrio, não representa apenas uma ameaça ao Estado de Direito (aos direitos das pessoas em face do Poder), mas produz dano considerável no combate eficaz, organizado e coerente à pandemia. Se, há um ano, não poderia surpreender nem merecer censura algum desnorte em face da originalidade do momento vivido, já é tempo de tirar algumas conclusões preliminares sobre o Direito da pandemia:

1.      Começa por surpreender a ausência de uma Lei de Saúde Pública desenvolvida e robusta, que legitime a atividade das autoridades de saúde em caso de emergência sanitária e preveja de modo claro os meios disponíveis ao seu alcance. A ausência desta lei – ao que parece estranhamente “encomendada” à Provedora de Justiça – 11 meses depois do início da pandemia, não abona acerca do brio legislativo do Parlamento e do poder político e reforçou um quadro de incerteza e insegurança jurídicas, que o Governo remendou com o recurso a regulamentos administrativos que restringem direitos fundamentais sem habilitação legal indisputável, o que peca por defeito, e o Presidente da República com declarações recorrentes de estado de emergência, o que pecou, muitas vezes, por excesso.

2.      A “navegação à vista”, compreensível no primeiro momento de embate da pandemia, revelou-se contudo bastante persistente, dando lugar a “tiros  legislativos de pólvora seca”, como aquele que pretendia tornar obrigatória a utilização da aplicação StayAway-Covid e que em boa hora a comunidade jurídica alertou para a sua flagrante inconstitucionalidade e inoperacionalidade,  ou pela opção  de medidas de racionalidade e proporcionalidade discutíveis, como a proibição de funcionamento de espaços comerciais a partir das 13h ao fim-de-semana, que provocou o efeito perverso de contribuir para maiores ajuntamentos de pessoas, ou a proibição de venda de bebidas alcoólicas a partir das 20h, o que significa que a sua aquisição antes dessa hora continua a ser permitida, não se vislumbrando que finalidade pretende alcançar, ou o tratamento discriminatório de diferentes atividades , como sucedeu naquele caso grotesco da autorização de público na prova de Fórmula 1 no Algarve, enquanto continuava vedado o acesso de espectadores a recintos desportivos ao ar livre. É também difícil acompanhar a razão da proibição da venda de livros e é juridicamente inaceitável a insana proibição de lecionação online a todos os estabelecimentos escolares, para dar apenas mais dois exemplos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

3.     Tivemos ainda o recurso a fórmulas jurídicas vagas, tíbias ou a soft law cujo alcance apenas contribuiu, a meu ver, para gerar confusão nos cidadãos e nas autoridades responsáveis pela respetiva aplicação ou execução. O caso mais evidente foi o do dever geral de recolhimento domiciliário, que não era bem um dever, porque não poderia ser coercivamente imposto, nem era bem geral, atendendo à profusão de exceções que o acompanhavam. Bem sei que podemos ensaiar aqui subtilezas da argumentação jurídica, de que há normas sem sanção, de que também existem obrigações naturais ou deveres cívicos, como o de votar.  Nada disto concorre, contudo, para eficácia, clareza e transparência que o combate à pandemia exige e, por outro lado, aumenta o perigo da passividade das autoridades em face do incumprimento de deveres que não podem conter ou abre a porta ao arbítrio não respaldado por critérios claros.

4.     A informalidade ou o improviso marcaram igualmente a resposta institucional à pandemia. A criação de órgãos ad hoc, como a famosa task force para a vacinação, cujos membros não auferem sequer remuneração e é responsável pela definição e execução do plano decisivo de combate à pandemia, não deixa de merecer apreensão, independentemente dos méritos e da boa vontade das personalidades que a integram. Também causa estranheza que os principais titulares de órgãos de soberania reúnam, de quando em vez, com especialistas nas chamadas “reuniões do Infarmed”, quando a gravidade do momento exigiria que o Governo formalizasse a constituição de um grupo de técnicos responsáveis pelo desenho das medidas, com serviços e órgãos da Administração Pública, tecnicamente responsáveis pelas suas decisões perante a Comunidade, sendo o Governo politicamente responsável pelas mesmas. Se os recursos disponíveis na DGS, no Instituto Doutor Ricardo Jorge ou no Infarmed não são suficientes, então que se reforcem, que se contratem os melhores e lhes atribuam uma missão e tarefas claras para desempenhar. É dificilmente compreensível que o Governo e o Presidente da República façam depender a tomada de decisões graves de reuniões informais que têm no Infarmed. Mais uma vez, não está em causa o mérito ou a boa vontade das personalidades envolvidas, mas a inconsistência deste método de trabalho e a desresponsabilização política que pode precipitar, como recentemente se viu na tomada de decisão de não encerramento das escolas, apresentada como respaldada pela opinião de um dos especialistas ouvidos no Infarmed.

5.     O Estado de Direito é também o Estado das formas, dos procedimentos, das instituições democraticamente legitimadas e politicamente responsáveis. A opção pela informalidade, pela tomada de decisões decisivas através de despacho, sem o escrutínio devido e carecidas da legitimidade e a transparência próprias do processo legislativo, desagua muitas vezes na confusão e incerteza jurídicas, como sucedeu recentemente com o deplorável caso das vacinas administradas a pessoas de grupos não prioritários. Ninguém sabia o que fazer às doses sobrantes, nem é sabido a que tipo de sanção estão sujeitos os infratores, embora a criatividade jurídica já tenha avançado várias hipóteses. Evidentemente, os procedimentos, os direitos dos cidadãos, designadamente em matéria de informação, consentimento e de colocação na lista de espera, bem como a distribuição de competências pelos vários serviços de saúde responsáveis pela administração das vacinas, deveriam estar suficientemente regulados segundo critérios acessíveis a todos os cidadãos. Ninguém sabe. Resta-nos aguardar por um telefonema ou uma SMS do Ministério da Saúde…  Perante tamanha informalidade e omissão, apetece citar a célebre frase de Jehring, para quem “a forma é inimiga jurada do arbítrio e irmã gémea da liberdade”.

Espera-se naturalmente que no esforço que resta no combate à pandemia – e não será tão curto como poderia parecer na passagem do Ano – se assuma integral e responsavelmente a tarefa de dotar a Administração Pública dos meios jurídicos e institucionais indispensáveis, claros e transparentes, bem como se aperfeiçoe a legislação que legitima o Estado a restringir as liberdades fundamentais dos cidadãos, de modo proporcional, com fundamentação razoável e através dos órgãos com legitimidade para a tomada das decisões políticas essenciais da nossa vida coletiva. A degradação do Direito e das instituições responsáveis pela sua criação e execução não pode ser apenas mais um dano colateral da pandemia.

Tiago Macieirinha é docente da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa