Em 1879, o passeio público foi demolido para que se pudesse rasgar a Avenida da Liberdade, criada à imagem dos boulevards de Paris. Lisboa sonhava, assim, ser mais parisiense. A sua criação foi um marco na expansão da cidade para Norte, e tornou-se rapidamente num local cosmopolita de excelência.

Hoje, são os franceses que procuram Lisboa, à procura do bom tempo, mas também de segurança, valores e cultura que se perderam numa França onde cerca de um terço dos residentes tem origem estrangeira. Muitos são reformados e beneficiam de uma lei portuguesa que lhes permite a isenção de impostos sobre as pensões durante dez anos. Esta isenção e o custo de vida em Lisboa, bastante mais baixo que em França, fazem desta cidade, para os reformados franceses, um paraíso fiscal, por vezes também designada, a Flórida da Europa.

A isenção de impostos tem os seus benefícios, pois estimula o mercado imobiliário e traz para a capital pessoas com um poder de compra elevado. Muitos destes estrangeiros vieram dar uma nova vida a edifícios devolutos que até há umas décadas enchiam a cidade de Lisboa.

O reverso da medalha é que os portugueses, não beneficiando desta isenção fiscal, e fruto de uma maior procura por estrangeiros, têm mais dificuldade em comprar casa. Não vale a pena ser fundamentalista e acreditar que devemos manter todos os residentes nas zonas históricas, porque isso é impossível e impraticável. Olhando para as grandes cidades da Europa, a tendência é esta: menos pessoas locais nas zonas históricas ou centrais, rendas e serviços mais caros, menos lojas tradicionais e cidades a ganharem o mesmo registo, sacrificando a sua identidade.

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Será que Lisboa vai pelo mesmo caminho? É possível fazer as coisas de forma diferente. Não interessa menosprezar o turismo pois este é, sem dúvida, um grande motor de desenvolvimento da cidade, da região e do país. Mas Lisboa pode destacar-se e tornar-se num exemplo para outras cidades. Para isso tem de se procurar estabelecer equilíbrios entre a população residente e a não residente.

Em Portugal temos muito a ideia de que o estrangeiro é que é chique. Queremos trazer tudo o que existe lá fora para Lisboa, como se a nossa cidade não tivesse já uma autenticidade, uma riqueza, uma densidade, uma amabilidade e uma cultura que tem tudo para atrair turistas.

Na área de arquitetura, por exemplo, os arquitetos em Portugal, regra geral, são mal pagos e desrespeitados. No entanto, graças aos bons projetos que alguns arquitetos como Souto de Moura, Siza Vieira, Aires Mateus, Carrilho da Graça, entre outros, têm vindo a desenvolver, o trabalho dos arquitetos portugueses é altamente valorizado no estrangeiro. Daí que seja difícil entender a razão porque vemos continuamente projetos em Lisboa serem entregues a arquitetos estrangeiros.

É preciso potenciar aquilo que é nosso. Para isto, é urgente uma boa gestão institucional, desenvolvimento urbano controlado,e um uso adequado na exploração turística – tudo o que faltou nas restantes cidades, com destaque para o exemplo maior, que é Veneza. Através do exemplo desta cidade, pode-se compreender melhor o resultado do desenvolvimento excessivo do turismo, que embora gere riqueza, provoca também a perda de laços sociais e de identidade cultural. Pelas mudanças na oferta de serviços e comércios nos bairros tradicionais, o espaço urbano foi abandonado pela população existente, que se sentia excluída dos mesmos.

Múltiplas ideias têm sido apresentadas para combater esta situação, apresentando-se de seguida cinco propostas que se consideram importantes para uma melhor experiência de vida na nossa cidade:

  1. Criar incentivos à habitação para estudantes, recém-licenciados e jovens casais. Desde 2013, então com António Costa, foram prometidas rendas acessíveis para Lisboa. Decorridos oito anos, apenas foram entregues, até à data, 391 fogos;
  2. Digitalizar a cidade. Uma cidade moderna tem de ser inteligente na forma como se relaciona com as pessoas e os cidadãos. Tem de ser uma cidade mais próxima. Para tal, o caminho da digitalização é irreversível. Um aspeto onde isto deve ser determinante é nos processos de licenciamento autárquico, que hoje são desesperantes para os munícipes e que afastam investidores. A autarquia parece funcionar sempre no sentido de criar problemas e não de arranjar soluções para quem quer investir e modernizar edifícios. Diversos técnicos emitem pareceres diferentes para o mesmo projeto. O tempo de espera e a burocracia criada para quem quer realizar obras licenciadas são incomportáveis para uma cidade que se quer moderna e próxima dos cidadãos;
  3. Reduzir/isentar de IMT para quem arrenda imóveis ou quartos e quem realiza obras de reabilitação urbana (hoje existe isenção desde que a reabilitação urbanística seja iniciada no prazo de dois anos após a aquisição do imóvel, o que, tendo em conta os tempos de resposta da Câmara, acaba por ser impraticável);
  4. Apostar num turismo de excelência, onde se privilegia a qualidade mais do que a quantidade. O turismo que nos interessa é aquele que usa, beneficia e acelera a proteção da identidade de Lisboa, que aproveita aquilo que é único, na sua variedade e diversidade. Só tirando o melhor proveito da sua identidade, da sua cultura, da sua diferença e daquilo que nos torna únicos, poderá Lisboa ser uma cidade que se afirma de forma distintiva, diferenciada e não produtizada;
  5. Potenciar as sinergias com os concelhos vizinhos. A Grande Lisboa é a soma de nove regiões (Lisboa, Oeiras, Cascais, Amadora, Loures, Mafra, Odivelas, Sintra e Vila Franca de Xira) . Hoje existem poucas sinergias entre estas cidades, para além da questão dos transportes, sempre em défice. Importa desenvolver o comércio e a habitação nas cidades vizinhas de Lisboa de forma a alargar as possibilidades para os turistas e habitantes.

O turismo vai regressar e vai crescer. Os investidores vão continuar a aparecer e a tomar a nossa cidade. Corremos o risco de Lisboa deixar de estar focada nos seus habitantes, perdendo-se o espírito, o carisma e a cultura da cidade.

É certo que é importante acolher todos: residentes e turistas. Todos têm de se sentir parte da cidade e todos têm de se sentir integrados na cidade. Mas tem de haver um equilíbrio que permita conciliar a vida dos residentes com a dos turistas, beneficiando, a curto, médio e longo prazo, todos os envolvidos.

Lisboa, não sejas francesa, tu és portuguesa.

Sara Oom Sousa, 28 anos, é arquitecta no atelier VLMA. Em 2010, juntamente com cinco amigos, fundou a Just a Change, uma associação que combate a pobreza habitacional em Portugal através do voluntariado jovem. É também co-fundadora da marca de mobiliário portuguesa Fuschini e da Solo Ceramic (uma marca de cerâmica feita à mão). Juntou-se aos Global Shapers Lisbon Hub no final de 2019.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.