Em Portugal, Hoje. O Medo de Existir (2004), José Gil introduziu uma adenda em 2007 (11.ª edição) que se esgota num panegírico do governo do momento. O autor transformou a maioria absoluta do Partido Socialista (2005) liderado por José Sócrates num tónico extra da sua abstração filosófica assinalando a «(…) extraordinária dinâmica reformista do Governo (extraordinária, quanto mais não seja, pela velocidade que adquiriu) (…). O governo não foi capaz de transmitir à população a confiança e a crença mobilizadora na pertinência das suas políticas. Porque, ao gerar medo, paralisou os portugueses. A modernização, que deveria abrir os espíritos, fê-los encolher. (…) Pior: a preocupação pelo défice influencia a própria elaboração dos vários planos de modernização, concebendo-se estratégias e programas que sacrificam a racionalidade das medidas em tal sector (por exemplo, na educação, na saúde) aos imperativos do equilíbrio orçamental. O que é gravíssimo» (pp.135-137).

O conteúdo original do livro (2004) não havia desperdiçado oportunidades para evidenciar o inverso, os efeitos perniciosos para a identidade, sociedade e democracia portuguesas da ação de políticos de ‘direita’, associando-os a grosserias, leviandades e «berlusconização» do poder (cf. pp.97-98; e pp.115 e segs.), além do tiro ao alvo obsessivo ao salazarismo.

Reflexões de «(…) um dos 25 “grandes pensadores” de todo o mundo, ao lado de Richard Rorty, Peter Sloterdijk, Toni Negri e Slavoj Žižek», num livro vencedor do Prémio Literário de Ensaio P.E.N. Clube Português 2004. Indiferente a tais predicados, poucos anos volvidos Portugal vivia em pré bancarrota e com disfuncionalidades institucionais em áreas sensíveis, como a justiça ou o ensino, circunstâncias que determinaram o fim do promissor governo socialista em 2011. E não foi necessário esperar muito mais para, a 21 de novembro de 2014, o elogiado ex-primeiro-ministro acabar detido por suspeitas indissociáveis da sua ação governativa.

O livro vale como arquétipo da colisão, num curtíssimo intervalo de tempo, entre a reflexão filosófica e a realidade vivida, case study sintetizável em quatro notas. A primeira, um ensaio dessa natureza partiu necessariamente de pressupostos analíticos errados, o que invalida as suas pretensões filosóficas, científicas ou académicas. A segunda, não é compreensível que uma obra com propósitos de formação universitária aborde temáticas numa perspetiva ‘light, ‘gira’, ‘criativa’ passando ao largo de referentes teóricos mais do que clarificados por Sigmund Freud, Gabriel Almond, Serge Moscovici, Norbert Elias, Jorge Vala, entre outros, atitude materializada na invenção do conceito absurdo de legitimação dos ativismos, a ‘não-inscrição’, um retrocesso em relação ao modelo analítico de 1970 de Albert Hirschman para os mesmos propósitos. A terceira, está em causa a propagação social de patologias do conhecimento por um caso raro de sucesso editorial em circulação desde 2004 e que em 2017 contabilizava a décima quarta edição, após outro estrondoso êxito de 1987 continuar a resistir a críticas que o tornaram impróprio para consumo. O quarto e último aspeto, o livro de José Gil é cristalino na sobreposição tóxica entre o conhecimento (pelo conhecimento) e o poder (pelo poder), tendo sido justamente para proteger a indissociabilidade entre liberdade, rigor e qualidade do pensamento que as sociedades contemporâneas atribuíram às universidades o monopólio da produção, validação e renovação de conhecimentos analíticos ou científicos e, para isso, garantiram a autonomia das instituições do conhecimento contra as intromissões do campo religioso (fé) e do campo político (poder) (cf. Max Weber).

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O caso em apreço apenas acrescentou um fragmento a provas bastantes do PREC (tipificação portuguesa de uma tendência internacional) ocorrido no interior das universidades que subverteu os pressupostos que as instituíram e que nos faz viver num tempo histórico peculiar. Quanto mais frágeis as sociedades, mais as universidades passaram a comprometer os seus destinos, perversão transformada num dos maiores entraves ao desenvolvimento das regiões periféricas, sendo que Portugal se localiza num estádio ainda assim intermédio.

Basta recuar a inícios da década de setenta para compreender a propagação do fenómeno, época em que a semente há muito presente nos meios universitários ocidentais passou a ser prodigamente regada pela intromissão abusiva, nas universidades, do alto patrocínio da ONU que modelou as atitudes dos governos, num ciclo de regressão da autonomia das ciências sociais e humanas em que quanto mais os países do terceiro-mundo se tornavam independentes e aderiam à ONU, mais as suas utopias se infiltravam no coração das sociedades ocidentais por esta via (os estudos e o percurso de John Rex são elucidativos).

Foi nesses inícios dos anos setenta que a tradição intelectual em causa garantiu – em livros, estudos, artigos e caricaturas na imprensa (internacional) – que as futuras independências das colónias portuguesas em África, tal como a urgência de pôr termo às sequelas coloniais europeias através dos regimes de minorias brancas (África do Sul/Namíbia e Rodésia depois Zimbabwe), lançariam as economias europeias numa crise de difícil saída. Asseguraram que estas viviam numa dependência sem cura da exploração dos recursos naturais e humanos de África e, em sentido inverso, as transições de poder imediatas iriam proporcionar aos povos autóctones, muito em especial nos territórios então prósperos da África Austral (que incluíam Angola e Moçambique), níveis elevados de desenvolvimento.

O tempo fez cumprir a componente formal das profecias com a rapidez de um castelo de cartas que se desmorona, a conquista da dignidade das independências. Porém, na componente substantiva, e ao contrário do ciclo anterior de colonização efetiva, a época pós-colonial jamais parou de agravar o fosso entre os países europeus ocidentais e respetivas ex-colónias africanas, isto é, cresceram sempre as incongruências entre as análises projetivas e a realidade vivida numa região do mundo onde quase tudo saiu ao contrário. Constituindo a passagem do tempo o aferidor por excelência da qualidade do conhecimento, trata-se da mesma patologia identificada no livro de José Gil.

E deve insistir-se no exercício. Suportada em estudos, análises, muitos livros, comentários na comunicação social a mesma tradição académica e intelectual, inabalável como sempre, garante-nos hoje – cito dois casos – que a governação de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, e sobretudo a de Donald Trump, nos EUA, desembocarão em desastres que afetarão os equilíbrios do sistema internacional, os direitos humanos, a proteção ambiental, entre outras hecatombes e retrocessos. Porém, ao fim de um longo histórico de erros analíticos parece germinar alguma consciência cívica capaz de afrontar a autoconfiança desses discursos antecipando que as suas pretensas racionalidades projetivas irão colidir, a prazo, com realidades vividas diversas das anunciadas, talvez até de sinal contrário.

A razão de fundo de filósofos, historiadores, sociólogos, economistas, juristas, politólogos, entre outros insistirem em pensamentos viciados, e que o tempo transformou em dolosos (os venezuelanos contam-se entre as vítimas recentes), resulta de as sociedades e, pior, os pares académicos não terem o hábito de se confrontarem mutuamente com o sentido e consequências das suas próprias análises anteriores. Se existem sinais de as sociedades ocidentais estarem (finalmente) a começar a naturalizar as representações da escrita e do livro, os significados destes resistem envoltos em névoas de sublimação herdadas de crenças animistas ancestrais sobre certos objetos mágico-religiosos, depois reinventadas no milenar culto da Bíblia e demais livros sagrados. Continua, por isso, difícil que a escrita e o livro sejam tomados por aquilo que passaram a significar, manifestações comuns da condição humana que tanto favorecem a racionalidade analítica, quanto funcionam como agentes tóxicos dessa mesma racionalidade

O facto é que as sociedades são hoje vítimas da confiança que (ainda) depositam nos meios académicos enquanto compensadores de desconfianças sempre latentes em relação aos poderes políticos. Ao permitirem que o poder tutelar dos estados sacrificasse a sua autonomia, as universidades demitiram-se do dever elementar de demarcar fronteiras objetivas entre conhecimentos analíticos e ideológico-especulativos; conhecimentos científicos e de senso comum; conhecimentos válidos e inválidos.

Como todas as crises são crises do conhecimento, a atualidade justifica duas atitudes. A primeira, a de se assumir que a crise existe e não é superficial ou acidental, antes profunda, estrutural, pressupostos para poder ser enfrentada. A segunda, compete às universidades redefinirem e explicitarem com clareza os princípios epistemológicos que justificam o monopólio que exercem sobre a produção, validação e renovação de conhecimentos, uma carta de princípios que renove a sua legitimidade institucional no contexto das sociedades em que se inserem.

Admito ser fundamental detalhar os conteúdos dessa renovação epistemológica. Mas, pelo menos para já, essencial é que os indivíduos comuns e os que preservam abertura de espírito nos meios universitários – entre docentes, investigadores e estudantes – reforcem a consciência de serem parte integrante de ambientes intelectuais tóxicos. Estes são tão nefastos para o conhecimento quanto são, para o meio ambiente, o lixo que se acumula nos oceanos, a poluição atmosférica e a contaminação dos solos nas grandes metrópoles africanas ou chinesas, a destruição da camada de ozono, a aceleração das alterações climáticas, entre outras ameaças. Tudo heranças tóxicas do século XX de uma mesma matriz: produz-se, produz-se, produz-se e que se lixem as consequências a prazo.

Não ler com sentido crítico grandes sucessos editoriais como os de Boaventura de Sousa Santos ou José Gil, entreoutros, é como não querer ver, tratar e minimizar o lixo que as sociedades necessariamente produzem.