Na história do PSD, há líderes sobre os quais se podem escrever livros suficientes para encher uma pequena biblioteca — como Sá Carneiro ou Cavaco Silva. E, depois, há líderes cuja carreira partidária cabe inteirinha numa nota de rodapé e ainda sobra espaço — como Sousa Franco ou Menéres Pimentel. Luís Montenegro, como é evidente, deverá querer pertencer ao primeiro grupo, mas ainda tem de mostrar que não merece ir para o segundo.

Há uma razão para Sá Carneiro e Cavaco Silva se distinguirem de todos os outros líderes do partido — e não é a sorte. É que tanto um como o outro perceberam com irrefutável clareza  que o PSD só tem utilidade para os eleitores se for o partido que liberta o país do insuportável peso daqueles que querem controlar a sociedade através do Estado.

No final dos anos 70, o principal objetivo político do PSD de Francisco Sá Carneiro era libertar o país dos planos revolucionários de alguns “militares de Abril” que se recusavam, teimosamente, a voltar a estacionar as chaimites nos quartéis. Esses militares, que julgavam ter o direito divino a serem tutores da democracia, já tinham, anos antes, condicionado a aprovação da Constituição através do Pacto MFA-Partidos, que impunha limites estritos à atuação dos deputados eleitos pelo voto livre dos portugueses. E, naquele momento, estavam a tentar condicionar a governação, através de um órgão assustadoramente, mas apropriadamente, chamado Conselho da Revolução. Em 1979, Sá Carneiro ganhou uma maioria absoluta; mas os “conselheiros da revolução” tinham um poder mais absoluto ainda: o poder do chumbo. E aplicaram-no vez após vez para travar Sá Carneiro. Um exemplo: na época, a chamada lei de delimitação dos sectores económicos determinava quais as áreas que estavam absolutamente interditas aos privados. Não vale a pena entrar em grandes detalhes: essas áreas eram muitas. A AD queria mudar a lei, mas nem sequer estava a ser particularmente ambiciosa — não se atrevia a tentar a reprivatização das empresas nacionalizadas que atuavam nesses setores. O objetivo era apenas, modestamente, o de diminuir a quantidade de setores que estavam reservados em exclusivo para o Estado, permitindo, assim, que as empresas privadas pudessem entrar nessas áreas.

Mas nem isso era aceitável para os “militares de Abril” que serviam de guardiões do regime. O Conselho da Revolução, que albergava um órgão chamado Comissão Constitucional, considerou a lei inconstitucional e o Presidente Ramalho Eanes, que estava em choque com Sá Carneiro, vetou-a. Perante isso, o governo da AD elaborou um novo decreto-lei, que desta vez mantinha a proibição de acesso dos privados à exploração de serviços como o gás e a electricidade. Novo chumbo do Conselho da Revolução e novo veto presidencial. Uma terceira versão do diploma acrescentava as áreas do armamento, da petroquímica e da siderurgia aos setores interditos aos privados. Desta vez, a Comissão Constitucional não se opôs e Ramalho Eanes aconselhou a que o diploma passasse — mas o Conselho da Revolução, a bufar de irritação e a suar de indignação,  chumbou-o na mesma.

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Houve muitos obstáculos como este. A dada altura, Sá Carneiro percebeu que estava paralisado num “impasse” (uma das palavras favoritas dele). Por isso, decidiu pedir aos eleitores “um governo, uma maioria e um Presidente”. Com a Constituição da época, essa era a única forma de reformar o país. E, mesmo assim, sobraria sempre a oposição do irremovível Conselho da Revolução. Meses depois, reconhecendo que a AD pretendia efetivamente “mudar Portugal”, os eleitores deram-lhe uma segunda maioria absoluta, maior do que a primeira.

Anos mais tarde, depois de um governo de bloco central, Cavaco Silva também quis “mudar Portugal”. Se Sá Carneiro pretendeu libertar o país da tutela dos “militares de Abril”, Cavaco planeou libertar o país do estatismo do PS. Há um exemplo que explica tudo: quando o PSD chegou ao poder, praticamente toda a comunicação social pertencia ao Estado. Um a um, Cavaco Silva começou a vender jornais, para grande escândalo dos socialistas, e abriu a televisão aos privados. Já sem o Conselho da Revolução, que tinha desaparecido, com resistências, na revisão constitucional de 1982, o “cavaquismo” tirou a nossa economia do paleolítico — e, assim, convenceu os eleitores a darem-lhe votos suficientes para conseguir duas maiorias absolutas imbatíveis.

Agora, é a vez de Luís Montenegro. Se quisesse, o líder do PSD teria muito para fazer. Hoje, os portugueses refugiam-se dos comboios que não andam em novos autocarros que têm preços mais baratos, que cumprem horários e que chegam ao destino; refugiam-se dos hospitais sem médicos em consultas privadas que pagam com seguros de saúde; e refugiam-se das escolas sem aulas em colégios privados que cumprem a função básica de terem as portas abertas quando os alunos chegam de manhã. O ponto em que nos encontramos é este: o Estado exige estar em todo o lado, mas não consegue estar em lado nenhum. E o PS faz tudo o que consegue para evitar que os privados preencham o espaço que o Estado deixou vazio. No meio, ficam os portugueses — sem chão e sem rede.

Tal como aconteceu em 1979 e em 1985, este seria o momento para o PSD romper. Se quisesse fazer isso, talvez o partido voltasse a receber os votos que permitiriam uma maioria absoluta. Mas, até ao momento, não quis — e por isso estamos de regresso ao “impasse” contra o qual Sá Carneiro se bateu. Para já, a ambição de Luís Montenegro resume-se numa nota de rodapé. Enquanto for assim, de facto, não vale a pena mexer em nada: como está, está bom.