A única coisa que se pedia a Luís Montenegro era que lesse jornais em inglês. Não era preciso mais do que isso. Aliás, bastava que o seu domínio do dialeto estivesse ao nível de Zézé Camarinha, o autointitulado “último macho man português”. Este empreendedor algarvio ficou conhecido por entabular diálogos frutuosos com turistas inglesas alertando-as que, quando expostas ao sol inclemente, “you gotta put da cream”. Se, de facto, exercitasse regularmente o seu inglês, o primeiro-ministro conheceria a saga de Sue Gray — e teria evitado cometer o maior erro do seu governo.
Depois de vencer as eleições em julho, o líder do Partido Trabalhista escolheu Sue Gray para sua chefe de gabinete em Downing Street. Não foi uma extraordinária surpresa: ela já era chefe de gabinete de Keir Starmer quando estava na oposição. Mas foi uma enorme imprudência porque, claramente, Sue Gray punha a ambição à frente da ética, à frente da sensatez e, se quisermos ser ligeiramente dramáticos, à frente da decência.
É que Sue Gray não desceu dos céus, como Nossa Senhora. Antes de aceitar a oferta de emprego dos trabalhistas na oposição, ela tinha sido uma das funcionárias públicas mais poderosas do país. Aliás, tinha sido tão poderosa que ficara com a responsabilidade de dirigir o inquérito ao chamado “partygate”. Foi ela quem teve de decidir se o primeiro-ministro conservador Boris Johnson violara ou não as regras ao permitir que se realizassem uma série de “festas” no seu gabinete durante o confinamento decretado na altura da pandemia. A progressão dos acontecimentos e a progressão da carreira de Sue Gray aconteceram numa linha reta: em maio de 2022, ela publicou um relatório onde censurava o líder dos conservadores; em setembro de 2022, Boris Johnson foi forçado a demitir-se do cargo de primeiro-ministro; em setembro de 2023, Sue Gray tornou-se chefe de gabinete do líder dos trabalhistas; e, em julho de 2024, tornou-se chefe de gabinete do novo primeiro-ministro. Foi seguramente para situações como esta — em que alguém derruba um primeiro-ministro, provoca uma crise no partido no poder e depois vai trabalhar para o líder do outro partido, ajudando-o a chegar ao governo — que Deus inventou a expressão “conflito de interesses”.
Mas havia pior. Poucos meses depois de o novo governo trabalhista estar em funções, os jornais descobriram que Sue Gray tinha um salário superior ao de Keir Starmer. Imagino que isto nos possa soar familiar: para que esta situação fosse possível, o primeiro-ministro precisou de mudar as regras. Ou seja, fez uma lei à medida de Sue Gray. Keir Starmer ainda tentou resistir e afirmou, com a capacidade argumentativa de uma foca rouca, que o salário da sua chefe de gabinete “não devia ser matéria de debate público”. Os jornais, naturalmente, discordaram. E, em outubro, Sue Gray foi expeditamente removida do cargo.
Se Luís Montenegro tivesse o hábito de ler a imprensa inglesa saberia fazer a comparação a tempo e concluiria sem dificuldade que a história de Hélder Rosalino só poderia acabar muito mal. Um primeiro-ministro que ganha 8 mil euros por mês não pode convidar para secretário-geral do governo alguém que pretende ganhar 16 mil. Achar o contrário é desafiar os limites da lógica e, pior do que isso, desafiar a paciência dos eleitores. Ignorando a história de Sue Gray, o nosso primeiro-ministro convenceu-se de que, com o habitual jeitinho português, a coisa ia lá. Como proclamava Zézé Camarinha num anúncio a um instituto de ensino de inglês, “without english, you’re done ao beef”.
Ler a imprensa inglesa ajudaria Luís Montenegro a identificar um outro problema. Ao cruzar as notícias sobre Sue Gray nos jornais britânicos e sobre Hélder Rosalino nos jornais portugueses, perceberia o seguinte: o primeiro-ministro inglês ganha 201 mil euros por ano; a chefe de gabinete dele ganhava 205 mil euros por ano; o novo secretário-geral do governo português preparava-se para ganhar 224 mil euros por ano. Parafraseando Marcelo Rebelo de Sousa: afinal, somos ricos e não sabíamos.