Descobri verdadeiramente tudo o que o processo de luto envolve no dia 4 de março deste ano, dia em que perdi aquele que foi o grande amor da minha vida – a minha “vózinha”, como eu gostava de a chamar carinhosamente.
Foi nesse dia, por volta das 8 horas da manhã, que o meu telemóvel tocou para anunciar o seu fim. Foi uma morte inesperada, que aconteceu sem que eu estivesse preparada (nunca estaria preparada para me despedir dela para sempre). E ali, naquele momento, engolida por um desespero e tristeza profundos enquanto sentada no chão do corredor da minha casa, cara a cara com o meu maior e mais terrível medo, consegui senti-la. Estava enroscada a mim, na minha solidão e na dor que rói e persiste.
Senti-me (ainda hoje me sinto) um barco abandonado. Sozinha. Vulnerável às grandes tempestades. De navegar cansada (ou cansada de navegar?). Peregrina. Boiando à tona. Sendo embalada pelo vento. Sem porto nem abrigo. E o mar às vezes é traiçoeiro, sobretudo em dias de nevoeiro.
Há saudades que são grandes tempestades. Se hoje, passados quase 5 meses após esta lamentável perda, me dizem “a vida continua” – não sei o que é a vida. Sei que me devora, como a tempestade devora o barco.
Não sou especialista em matéria de questões relacionadas com o processo de luto, mas afirmo, certa do que digo, que a morte de quem nos é querido e o luto de uma grande perda não se podem reduzir a uma cerimónia, a um caixão, a meia dúzia de cartões de visita com uma fotografia. Não se pode reduzir a uma ausência, às lágrimas que nunca secam, a uma saudade que é uma fome insaciável, a um casaco que ainda tem, entranhado, um cheiro que nos é familiar.
A morte de uma pessoa que amamos é um inferno que queima no nosso peito. Faz-nos vender a alma ao Diabo, na esperança de a ressuscitar. É a nossa miséria, a nossa doença. Mata-nos a esperança (mas antes morremos nós).
A perda da minha avó ensinou-me algumas coisas, mas a maior lição que tirei deste acontecimento é a de que nem a vida nem o tempo curam um coração amputado pela morte. O tempo não cura um mundo que não nos cabe mais nos olhos, uma casa deserta, um silêncio ensurdecedor, a falta de um abraço. Não cura um pássaro sem asa, porque só duas lhe permitem voar.
Há momentos em que não estou aqui, em que parto não sei para onde e me disperso na minha existência. Existem dias em que não sei sequer se tenho alma. Talvez ela tenha andado por águas turvas do meu mar e eu a tenha desencaminhado. Uma alma escondida de um corpo que a tenta, a todo o custo, salvar.
Ao longo dos últimos meses, a expressão que os meus ouvidos mais têm escutado é “o tempo cura”. Não, meus senhores. O tempo não cura estas tragédias da vida. É demasiado escasso para isso (e existem relógios que estão parados).
Dizer a alguém, que está em processo de luto, que o tempo cura é, para mim, um atentado à empatia. Em momentos como este, em que vivenciamos uma dor psicológica intensa, as horas passam num mundo que não nos passa pela cabeça porque não temos cabeça para pensar. Não sabemos se é fria ou tórrida a experiência de caminhar descalços pela fina placa de gelo de um inferno que nos separa de alguém que amamos: se é tórrida, dispo-me deste mundo desejosa de a reencontrar na terra das almas, onde supostamente repousa. Se é fria, visto o seu casaco castanho.
Quando era gaiata e alguém próximo falecia, a minha avó, quando questionada acerca de para onde iam as pessoas depois de que o caixão se fecha, respondia sempre o mesmo: “vão para o céu.” Para o céu… nunca me conseguiu convencer, mas a verdade é que, desde que ela se foi, me refugio nessa ideia que tanto alento me tem dado. E se, assim como as estrelas também nós somos pó, que nunca nos falte céu.
O luto torna-nos mestres. Eu tornei-me mestre em fingir que não transformo a minha rotina numa bola de neve, que rola até me engolir.
Sigo o que sinto porque me tornei a minha cobaia. Sou agora mestre em ser levada pelo vento, mergulhando na ilusão de que dei corda aos sapatos. Existem dias em que me deixo quieta, debruçada no parapeito da janela a ver quem passa e admiro-me se alguém parece mais fantasmagórico do que eu. Passo a vida a sentir a dor constante de ser aliciada por algo que não sei se existe ou se está apenas na minha cabeça. Enrolada numa teia onde me envolvo para acabar comida viva, seja pela aranha do tempo ou pelo vento – esse malandro que vai e me leva, ao relento, para todo o lado sem saber primeiro de onde veio e me ocupa sem permissão, ignorando se estou cheia de vazio ou simplesmente vazia por dentro.
E vocês dizem:
– O tempo ajuda.
E eu respondo:
– O meu relógio está parado.
– Mas o tempo não pára.
Durmo pouco porque perdi o sono e, quando o tenho, é porque estou acordada para a vida. Não me falem sobre tempo, sobre seguir em frente. Não me digam que ela foi para um “lugar melhor”. Não me digam nada – abracem-me, apenas.