Não há como a descida ao concreto para compreender novos aspectos das políticas de habitação pública. Usaremos o caso exemplar de um documento da Câmara Municipal de Lisboa, a maneira como foi aprovado, e as modificações que sofreu no processo. A Carta Municipal de Habitação define a estratégia a dez anos para guiar o município no capítulos das políticas de habitação. Antecipa um esforço financeiro superior a 900 milhões de euros. Em Junho de 2023, Carlos Moedas apresentou a primeira versão da Carta. Foi rejeitada pela esquerda. Seguiram-se negociações. O PS conseguiu impor as suas exigências. Na versão actual, aprovada em Outubro, e por vontade do PS, a Carta obriga a Câmara a exercer o direito de preferência nas transacções em Lisboa. O objectivo declarado do PS com esta imposição era aumentar o número de casas da Câmara. Há umas semanas, este ponto específico da Carta, da autoria do PS, levou a Câmara a comprar um edifício na Praça José Fontana, em frente ao Liceu Camões, no centro de Lisboa. Custará 2.590.000 euros, com área bruta de 1.062 metros quadrados (inclui área coberta e uma parte em logradouro).

É um edifício de escritórios. Precisa de obras para que as fracções sejam transformadas em casas: é fundamental construir cozinhas em cada uma delas, e provavelmente aumentar o número de casas de banho. Serão instaladas redes novas de esgotos, abastecimento de águas, electricidade, e gás. Não se gasta nisto menos de 1.500 euros por metro quadrado. Fiz um cálculo, com valores e áreas muito favoráveis, e conclui que entre a compra do edifício e as obras necessárias, a operação vai custar à Câmara, depois de tudo terminado, nunca menos de 4.090 euros por metro quadrado. O edifício tem cerca de 100 metros quadrados por piso. Ou fazem um apartamento com 100 metros quadrados, ou dois apartamentos com 50 cada, o que é menos provável: em 50 metros quadrados cabem apartamentos do tipo T1, ou seja, sala e um quarto; nenhuma família vive confortavelmente só com um quarto. Em 100 metros quadrados faz-se um T3 mais ou menos espaçoso, ou um T4 com os compartimentos mais apertados; ou seja, e respectivamente, sala mais dois ou três quartos, e um escritório (quase sempre, pelo menos um dos membros do casal precisa de trabalhar em casa).

Este apartamento com 100 metros quadrados custa à Câmara de Lisboa 409 mil euros. Mesmo que o ponha no mercado, para arrendar ou para vender, com um valor mais baixo, é um erro. Prejudica as famílias em vez de as ajudar. Porquê?

O Estado é o maior proprietário de Lisboa, e o segundo maior é a própria Câmara. Quer isto dizer que o Estado tem excesso de património, não tem falta. Grande parte deste património está vazio, ou sem uso, e não está sequer atribuído a habitação. Há desde antigos quartéis, até serviços públicos, em edifícios total ou parcialmente abandonados, que fecharam ou mudaram de instalações; palácios e palacetes com origens diversas, como heranças ou penhoras, escolas, hospitais, armazéns e pavilhões desactivados. Em vez de comprar, o Estado devia vender edifícios (cuja manutenção, como a lei obriga, custa fortunas) a investidores particulares, por valores um pouco mais baixos do que a média do mercado, na condição de eles os reabilitarem para uso de habitação. Com licenciamentos rápidos e regras inteligíveis, para inundar o mercado e fazer descer os preços. O aumento da oferta faz descer os preços, é uma lei básica da economia. A Câmara justifica-se com as verbas do PRR, que aparentemente assinará o cheque. Tinha razão Nuno Palma quando recomendou, no livro “As causas do atraso português”, que os nossos poderes públicos deixassem de receber dinheiro, para abandonarem o costume destrutivo de o espalhar em cima dos problemas, em vez de aprenderem a resolvê-los.

Mas estas operações não são de génese caótica nem aleatória. Obedecem a lógicas próprias que, na parte relevante para este texto, se podem resumir numa intenção e numa consequência. A intenção da compra é reforçar os poderes do Estado, através da propriedade pública da habitação. Significa mais domínio do sacrossanto Estado, em mais áreas da vida das pessoas. E maior dependência das pessoas perante as decisões e o poder do Estado. Por isso o PS forçou esta política, e a direita devia afastar-se dela. A consequência da compra é encarecer a habitação, através do aumento da procura. O Estado, sobretudo governado por quem representa eleitores da direita, deve começar a vender património. E reabilitar as casas que já tem. E não comprar nem mais um único edifício.

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