França é um dos países mais fascinantes da Europa. Por um lado, a presença pública de intelectuais e de escritores no grande debate nacional torna-o uma excepção numa Europa crescentemente tomada por tecnocratas, que fingem que as decisões políticas são tomadas de forma independente e asséptica. Por outro lado, o debate nacional é permeado, há anos, por uma sensação de derrotismo e de inexorável declínio. Se é certo que França perdeu centralidade no mundo, a começar pelo declínio da francofonia e de Paris enquanto centro intelectual do mundo, os franceses continuam a ter um nível de vida invejável e um estado social óptimo. A situação política e social em França tem recebido entre nós muito menos atenção do que aquilo que merece, o que é, no mínimo, surpreendente.

Nas últimas semanas, chegou a vez de Macron enfrentar a poderosa e temida rua em mais uma tentativa de reforma do sistema de pensões. Nos últimos 30 anos, quase todos os presidentes franceses tentaram reformar o sistema de pensões. Todos falharam. Para efeitos do rigor, é necessário qualificar o debate sobre a idade de reforma em França. Neste momento, a idade média de reforma é de 62.3 anos. No entanto, a barreira de 62 anos é apenas a idade legal mínima para obter a reforma completa. Ter 62 anos não é uma condição suficiente, mas sim necessária. Assim, para além de 62 anos de idade, os trabalhadores necessitam de ter trabalhado 42 anos ininterruptamente, o que significa, na prática, ter começado a trabalhar aos vinte anos, o que apenas se aplica a profissões pouco qualificadas e que não exigem estudos superiores. Para termos noção da fortíssima penalização que a diminuição de alguns anos de carreira têm, os seguintes números bastam. Um trabalhador com 62 anos que tenha trabalhado 38 anos, em vez de 42, receberá uma reforma correspondente a 40% do salário médio ao longo da carreira contributiva, em vez de 50%. Esta brevíssima explicação serve para enquadrar um debate simplista que muitos vezes é tido acerca da luta dos franceses pela manutenção daquilo que são entendidas como benesses excessivas do estado social. Na verdade, o mal-estar social e político em França, amplamente glosado na imprensa internacional, prende-se muito mais com a clivagem entre a geração dos baby boomers, os quais, na prática, tiveram uma vida fortemente facilitada e aproveitaram os anos gloriosos do crescimento económico para se instalarem comodamente, e as novas gerações que têm pressões económicas muito mais fortes e, em cima disso, são chamadas a pagar as pensões generosas da geração que queria proibir as proibições.

Independentemente do conteúdo da reforma proposta por Macron, a prazo, esta está já ferida de morte devido aquilo que, em ciência política, chamamos legitimidade procedimental. Existe uma vasta literatura que mostra que os cidadãos mudam as suas atitudes acerca de políticas públicas e de reformas em função do modo como estas são conduzidas do ponto de vista do processo de tomada de decisão. Quando Macron ordenou à sua primeira-ministra que avocasse o artigo 49.3 da Constituição para impedir que o poder legislativo, no qual a reforma seria certamente chumbada, votasse, feriu de morte a possibilidade de levar a sua proposta a bom porto, pelo menos no longo prazo. Mesmo que os cidadãos percepcionassem a legitimidade substantiva da reforma como positiva para o país, a ausência de legitimidade procedimental torná-la-ia inviável.

Num artigo recente publicado no American Journal of Political Science, Becher e Brouad realizaram um conjunto de experiências numa amostra representativa da população francesa, examinando as consequências da utilização pelo poder executivo de procedimentos que contornam as preferências políticas do ramo legislativo. O artigo de 2020, dá-nos pistas preciosas para entendermos o momento actual. De acordo com os autores, os cidadãos não são favoráveis à utilização destes instrumentos legais, na medida em que estes são percepcionados como abusos procedimentais do poder executivo. Quando isto acontece, a popularidade e o capital político do presidente e do governo são penalizados. Por outro lado, os resultados mostram algo que é aparentemente contraditório: os cidadãos também penalizam o presidente e o governo pela sua inacção, isto é, se não fizerem reformas políticas. O presidente da república encontra-se, assim, entre Scylla e Charybidis, com um dilema difícil de resolver. É penalizado se não fizer reformas, mas é também penalizado se as fizer de forma não consensual. No caso francês, o dilema entre consenso e maioria e as diferentes legitimidades é, de resto, bem ilustrado pela derrota da moção de censura da passada segunda-feira ao poder executivo, a qual, se fosse aprovada, teria significado o fim da reforma do sistema de pensões, pelo menos por agora. Os deputados têm de gerir multiplas pressões cruzadas: as suas preferências, as preferências do seu partido, a preferência do seu eleitorado, a preferência do presidente e as dinâmicas maioria-oposição.

A conclusão do artigo Becher e Brouad encerra uma lição importante para a feitura das políticas públicas em França e nas restantes democracias. Os cidadãos desejam e valorizam os agentes políticos que fazem reformas. No entanto, estas reformas têm de ser fruto de um processo consensual, envolvendo a oposição, e nunca implementadas de forma unilateral. Uma democracia madura e saudável deve conseguir atingir pontos de equilíbrio institucionais em que governo, oposição, sindicatos e cidadãos em geral conseguem alterar o status quo de uma forma em que não se entenda que existe apenas ganhadores e perdedores. Em contextos políticos cada vez mais polarizados, a fusão de legitimidade substantiva e procedimental é cada vez mais necessária mas também mais difícil de atingir.

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