Diretamente desde do país das distâncias absurdas, no qual ir de uma ponta à outra significa ir de Portugal à Lithuania, e em que o tamanho mais curto de café embarca umas dez bicas, apercebi- me esta semana de uma distância que os padrões americanos mantém mais curta que os padrões europeus. A distância entre as decisões políticas e o quotidiano.

É sabido que o Supremo Tribunal tomou decisões mediáticas e impactantes. A mais falada e leaked sobre o aborto e a sua determinação por cada pessoa. Mas também se falou sobre o transporte de armas e necessidade de este ser feito de forma visível ou não.

A potencialidade de qualquer um dos dois assuntos para ser debatido é ampla. Por vários ângulos. Tanto o da legitimidade de um pequeno grupo de pessoas com preferências políticas declaradas e que, ao dia de hoje, não coincidem com a maioria democrática em vigor, de, na prática, legislar. O outro ângulo, o óbvio, é o referente ao mérito de cada uma das decisões, no seu conteúdo. Sobre nenhuma das duas verso hoje.

O que me impressionou, como visitante da capital da Nação americana, foi a visível reação das pessoas. Como se a decisão tivesse sido tomada numa reunião que ocorreu no seu backyard. Pergunta-se como correu a semana e a resposta é que foi má e que não poderia ser de outra forma. Tropeçam-se em discussões, sem ser sussuradas, no metro. Vêm-se cartazes e t-shirts a passear na rua com a posição de cada qual em relação ao assunto. Empresas pronunciam-se. Afirmam estar disponíveis para cobrir custos de forma a possibilitar que colaboradoras que vivam em estados republicanos possam ter acesso a cuidados de saúde em estados democratas, se e quando necessário. Outras, indo mais longe, afirmam que em solidariedade com a tristeza dos seus colaboradores com a Pátria, aceitam e apoiam quem escolha ir viver para outro país (mantendo-os com as altamente benéficas condições de trabalho americanas).

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A minha admiração, estou certa, vem do facto de em DC, dado à sua população e proximidade aos centros políticos, as reações serem mais vocacionadas. Mas também é de notar a diferença face à minha habitual bitola ibérica. Quando decisões políticas polémicas foram tomadas em Portugal o assunto é coberto extensamente pela comunicação social, e é debatido em círculos íntimos, onde o à vontade não é ameaçado por uma ou outra opinião contrária. Mesmo em Espanha, em que os altos ruídos de rua os embaraçam menos do que a nós, e em que as manifestações tendem a ser bem mais numerosas e empoderadas, sinto que a vociferação da opinião pessoal vem de um sítio distinto. De uma diligência política particularmente denotada de certa franja da população (a minoria interessada).

Nos Estados Unidos não. Nota-se uma defesa que vai para além de ideais políticos, ainda que esta seja inevitável, por ser essa a forma que o assunto assume. E caem-se em exageros, tentadores em debates de assuntos de natureza fraturante. Parece-me intrinsecamente desapropriado a participação corporativa em intervenções médicas das suas colaboradoras, ainda que as intenções sejam boas e agradecidas. Vêem-se publicações e cartazes relativos a encorajamentos de vasectomias em massa e recolha e coleção de comprimidos abortivos “por prevenção”.

Vejo a inevitável reação de quem sente o calor na pele. Não é para menos. Relembro que falamos do país no qual mulheres negras tem três vezes mais possibilidades de morrer devido a complicações relacionadas com gravidez face a mulheres brancas (e não nos iludamos em relação a quem esta proibição mais afetará). E em que pais tem que ativamente aprender como abordar com os seus filhos o assunto de tiroteios em escolas.

Não lhes invejo o mérito. Mas não deixo de lhes admirar o fogo. O absoluto vestir da camisola e apregoar de opinião. De cabeça erguida e voz colocada. A utilização desta voz não de forma empenhada para causa alheia, mas em causa própria. Por nos respeitar tanto como o estado de arrumação da nossa sala de estar ou de higiene da nossa casa de banho. Se somos adultos para as ter, somos adultos para as manter. Porque fechar os olhos e empurrar com a barriga é uma inconsequente opção, mas todos conhecemos os cantos em que o cotão se acumula e ele sozinho não vai a lado nenhum.

Se a vocalização de opiniões não resolve a situação, pelo menos relembra-nos a todos que a política não é uma coisa que existe lá ao longe, para alguns. Sendo nós a base do sistema, somos também a razão da sua existência. As decisões não nos afectam. Antes determinam as nossas liberdades. Merecem o envolvimento. O aborrecimento. A demonstração.