Entre carências de toda a ordem, casos de flagrante corrupção e episódios de inenarrável incúria governamental continua a cumprir-se e a celebrar-se Abril com a aprovação de legislação avançada. Assim, depois da autodeterminação de género e de nome nas escolas ter vindo já libertar as crianças da escravatura da biologia e do registo civil, chega-nos a eutanásia para nos libertar a todos – velhos, novos e cuidadores de velhos e novos – da escravatura, da despesa e da carga de trabalhos (até para o Estado) que a vida geralmente implica.
Esta peculiar deriva esquerdista, já não proletária, mas marcadamente burguesa, consumista e decadentista, tem raízes profundas no itinerário libertino do Marquês de Sade e naquilo que há 55 anos foi o Maio francês. Tanto que alguns dos slogans que foram então bradados continuam a inspirar e a fundamentar a agenda da esquerda progressiva e radical – desde o “IL EST INTERDIT D’INTERDIRE”, com a interdição, proibição ou cancelamento expeditamente administrados aos que se regem por interditos religiosos, éticos ou outros; ao SOYEZ RÉALISTES, DEMANDEZ L’IMPOSSIBLE e L’IMAGINATION AU POUVOIR, que presidem a grande parte das imaginativas autodeterminações e autoatribuições.
Olhando as actualidades da época, em Nanterre (onde tudo começou nesse Março) e na Sorbonne, em Paris, detecta-se imediatamente nos manifestantes e nos estudantes revolucionários um ar inequivocamente burguês.
Esta cumplicidade social é uma característica da grande contestação no Ocidente. No século XVIII, os intelectuais revolucionários – ou melhor os sofisticados intelectuais cujas ideias haviam de, uma ou duas gerações depois, inspirar a Revolução – peroravam nos salões das senhoras da melhor sociedade, onde a repressão não entrava mas onde eram ouvidos com enlevo. Filhos e netos dessas distintas animadoras culturais teriam a cabeça cortada em nome das inofensivas ideias que as suas antepassadas, por vezes por puro entretenimento, tinham ajudado a divulgar, recebendo e protegendo os seus mentores.
Maio e a guerra Moscovo-Pequim
As ideias do Maio de 68 já andavam a fervilhar na América, em Berkeley e S. Francisco, com a agitação cultural e universitária contra a guerra do Vietname. Tinha havido também, à esquerda, uma conveniente revisão do “sovietismo” e do seu “conservadorismo burocrático” que tornava possível a coexistência de uma condenação da invasão da Checoslováquia pelos exércitos do Pacto de Varsóvia com o apoio às causas do Vietname, de Cuba e das insurreições latino-americanas. Entretanto, através de intelectuais e professores como Herbert Marcuse, suprimia-se a Vulgata estalinista e redescobria-se o “jovem Marx”.
Curioso é o facto de esta afirmação de “independência” em relação ao marxismo soviético se fazer acompanhar por um entusiasmo pio e fanático pelo maoísmo chinês, então a atravessar a “Revolução Cultural”. A repressão chinesa podia ser ainda mais paranóica, mais sanguinária, mais sinistra e mais totalitária do que a da URSS nos “anos de chumbo” de Breznev, mas pouco importava: a China estava longe e, vista da Sorbonne, exibia uma heroica beleza de cartaz.
Este olhar sobre o maoísmo e o comunismo chinês como uma coisa mais pura, mais coerente, mais popular, não foi só de adolescentes que se imaginavam a criar um mundo novo nas ruas de Paris pelo simples facto de atirarem pedras aos polícias; foi também o olhar de vários maitres à penser, entre os quais Jean-Paul Sartre e Louis Althusser. Ignorariam eles os horrores do maoísmo, os milhões de mortos de fome pelo Grande Salto em Frente, ou as loucuras e torturas da Revolução Cultural começada em 1966?
Recordando, a mais de meio século de distância, as raízes daquilo a que Raymond Aron chamou a “revolução inexistente”, vamos encontrar algumas pistas “chinesas” na manipulação, por uma potência estrangeira, da crendice e da devoção ideológicas dos burgueses ocidentais.
O polo internacional da época era a guerra do Vietname; uma guerra que escalara muito durante a presidência de Lyndon Johnson. Em 31 de Janeiro de 1968 começara a ofensiva do Tet pelos guerrilheiros do Vietcong, que, nas povoações onde tiveram sucesso, procederam a massacres e execuções de civis, incluindo mulheres e crianças. Mesmo assim, em Paris, como noutras respeitáveis capitais europeias, a esquerda radical e festiva saiu à rua “pela vitória do povo vietnamita contra o imperialismo americano”.
Foi com a prisão de maoístas em Nanterre, responsáveis pela destruição da sede do American Express em Paris que tudo começou. Paralelamente à questão do Vietname, que dividia a opinião americana e mundial, havia, no mundo comunista, uma outra cisão – entre a União Soviética de Breznev e a República Popular da China de Mao Tse-Tung. E embora fossem os soviéticos os grandes apoiantes militares do Vietname do Norte e do Vietcong, grande parte da propaganda anti-americana e pró-Vietcong, em França, vinha dos movimentos de Extrema-Esquerda pró-chinesa, como L’Union de la Jeunesse Communiste (UJC), ou os trotskistas Comités Vietnam de Bases (CVB), de Alain Krivine.
Esta cisão do “campo socialista” vai ter influência no Maio de 68. Depois da ofensiva do Tet, que acabou em fracasso, a crise persistente na América levará Johnson, a 31 Março, a declarar que não se iria recandidatar à Casa Branca e a ordenar uma suspensão dos bombardeamentos ao Vietname do Norte, abrindo a ponte para negociações.
Dias depois, a 3 de Abril, os norte-vietnamitas diziam-se dispostos a falar. Mas onde falar? Os franceses, pela voz do ministro dos Estrangeiros, Couve de Murville, sugeriam, em 18 de Abril, Paris; Hanói aceitava a 3 de Maio, Washington já aceitara. Os primeiros contactos far-se-iam a 10 de Maio e a 13 era inaugurada a Conferência de Paris.
Ora a China, que não queria negociações, iria, segundo alguns historiadores, activar em França os núcleos pró-chineses: Alain Krivine, Alain Geismar e Robert Linhart lançavam uma “frente estudantil” a que se juntava o Parti Comuniste Marxiste Leniniste Français, também pró-maoísta.
O PCF ortodoxo e pró-soviético, de Marchais, e a GGT (a central sindical comunista), de Georges Séguy, ficavam de fora destes movimentos. A 3 de Maio, devam-se choques entre o serviço de ordem da GGT e estudantes maoístas. Enquanto em Pequim a imprensa exaltava a “nova Comuna de Paris” e condenava a “clique soviética”, acusada de se aliar à burguesia francesa, o Pravda, em Moscovo, respondia, acusando “o grupo de Mao Tsé-Tung”, de caluniador do PCF.
Assim, paralelamente às grandes proposições libertárias à volta do sexo, da família e da propriedade, o Maio de 68 empurrava para o lugar de grande herói da Revolução Mundial, Mao, que, entretanto, promovia uma das maiores chacinas dos tempos modernos. Alain Peyrefitte, em C’était de Gaulle, refere que a embaixada da China em Berna entregou fundos aos estudantes maoistas.
Os soviéticos, por seu turno, usavam a linha dura para esmagar os movimentos de democratização polaco e checoslovaco. Em França, os comunistas franceses, de clara obediência soviética, mantinham-se- fora da rebelião estudantil e os sindicatos negociavam com o governo de Pompidou os acordos de Grenelle. Depois, o general De Gaulle fez uma visita relâmpago à força militar francesa estacionada em Baden, na Alemanha, comandada pelo general Massu, regressou a Paris e a máquina gaulista do RPF-RPR pôs-se em marcha. Em 30 de Maio, De Gaulle falou à Nação, comunicando que não saía da Presidência e que mantinha o primeiro-ministro Pompidou. Aproveitou ainda para denunciar aqueles “que pela intimidação, a intoxicação e a tirania” não deixavam “os estudantes estudar, os professores ensinar e os operários, trabalhar”.
Logo a seguir à sua intervenção, um milhão de pessoas desceu os Champs Élysées. A revolução era derrotada na rua, pelo povo da direita unida (diga-se que, para ter o apoio da Direita, De Gaulle, libertara os últimos presos da Argélia Francesa, entre eles o general Raul Salan).
O carnaval revolucionário
Raymond Aron chamou à “revolução inexistente” do Maio de 68 um “carnaval revolucionário”. Mas a verdade é que, se a revolução não veio acompanhada pelo terror – tal como a Revolução Francesa ou a Revolução Soviética –, o “carnaval revolucionário” e a “revolução cultural” vieram para ficar.
Como os burgueses inimigos da autoridade burguesa, de Deus, da Pátria e da Família veneravam ao longe o totalitarismo chinês ou os assassinos vermelhos do Cambodja, também os míopes slogans libertários da época serviriam depois para todos carnavais revolucionários. Por cá, serviram para cumprir o Abril da “descolonização exemplar” e das “socializações” da economia nacional. Graças a esse cumprimento, Angola e Moçambique tiveram guerras civis profundas e prolongadas, e as grandes empresas portuguesas acabaram destruídas por incompetência ou corrupção e foram depois parar às mãos de estrangeiros.
Hoje, não temos um grande grupo empresarial português, salvo na distribuição; nem um grande Banco ou uma grande Indústria; mas, isso, que importa se, num país sem educação nem saúde, vamos, de conquista em conquista, cumprindo Abril? Como? Introduzindo na legislação a ideologia de género e a eutanásia. Dizem-nos que estamos na senda do progresso e repetem-nos as palavras do queirosiano conde de Ribamar:
“Vejam toda esta paz, esta prosperidade, este contentamento… Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa!”