“Realmente impressionante”. Foi com estas palavras que um relator especial para os Direitos Humanos e o Meio Ambiente da ONU classificou, esta semana, a gravidade do cenário de seca que assola Portugal. Não é caso para menos. É, de facto, “impressionante” depararmo-nos com uma ameaça de seca que já é contínua (ao longo dos meses do calendário), transversal (nos setores que afeta) e irreversível, nas vidas de todos nós.

No momento em que se assinala o Dia Nacional da Água, acrescento que “impressionante” é também a forma como o próprio setor da água parece, em Portugal, não conseguir contribuir de forma consistente para começarmos a adaptar-nos a este novo panorama persistindo, por exemplo, em níveis de perdas de água muito elevados. Afinal, quem mais poderá saber como implementar e promover medidas realmente eficazes de gestão da água senão o setor que tem responsabilidade de levá-la, de forma segura e contínua (e, sim, também eficiente) à nossa população? A resposta deveria ser mais simples.

Entre as entidades gestoras do setor, encontramos de forma frequente argumentos que sublinham as elevadas necessidades de investimento para conseguir renovar infraestruturas, implementar tecnologia ou contratar recursos especializados. Sim, é certo: o setor do abastecimento não tem uma gestão isenta de custos de investimento e operacionais, tanto que, de acordo com a Lei,  estes devem refletir-se nas faturas aos utilizadores e não aos contribuintes (como está a acontecer em 60% dos municípios portugueses). Levar água 100% segura, casa a casa, um serviço disponível 24/7, e recolher e tratar essa mesma água depois de usada, devolvendo-a ao ambiente sem impacto negativo, é uma operação de alta complexidade, que exige elevada infraestruturação e monitorização intensiva – se queremos fazê-la de forma qualitativa e eficiente para o consumidor e para o ambiente – e isso tem custos e implica investimentos.

No entanto, o setor que sabe perfeitamente destes custos elevados e que os utiliza, até, como argumento para a sua inatividade é o mesmo que continua a ignorar as oportunidades de financiamento a que tem acesso.

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Tomemos como exemplo “impressionante” o PO SEUR. O Programa para a Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos foi lançado em 2014 com uma ambiciosa meta traçada para 2020: 603 milhões de fundos comunitários destinados ao ciclo urbano da água, com promessas de reduzir para 20% os alojamentos com serviço de qualidade insatisfatória, em áreas como o tratamento das águas residuais ou as perdas na rede de abastecimento.

Estamos, em 2022, perante um resultado dececionante: 20% destes recursos – 120 milhões de euros de fundos comunitários, sem custo para os utilizadores nem para os contribuintes – ainda não foram executados. Mas ainda mais dececionantes do que a tradicional incapacidade de execução do investimento, passados que são oito anos desde o arranque do programa, são os resultados dos investimentos executados.

Atente-se, por exemplo, à evolução na qualidade dos serviços. Se o objetivo era garantir que cerca de dois milhões de habitantes deixassem de ter um serviço de qualidade insatisfatória, os resultados de 2021 mostram que a execução de 80% do valor previsto (480 milhões de euros) apenas permitiu atingir 25% das metas estabelecidas na água (40 % no saneamento).

Estes investimentos ineficazes dizem respeito, em grande maioria, a candidaturas de entidades públicas, muitas vezes, em programas especificamente dirigidos a determinadas entidades e cujos resultados ficaram, evidentemente, aquém do pretendido. O que é curioso: apesar de o próprio PO SEUR reconhecer que o caráter público das entidades beneficiárias contribui para a “dificuldade na implementação dos projetos no terreno”, apenas 11% do total dos fundos são atribuídos a entidades privadas.

Torna-se fundamental tornar mais igualitário o acesso a estes e outros fundos nacionais e comunitários, atribuindo-os com base em critérios claros e transparentes que tenham em conta a relação entre o seu custo e o seu impacto na qualidade do serviço. Não podem ainda continuar a excluir-se do acesso a candidaturas a estes fundos operadores privados responsáveis pelo abastecimento de 20% da população portuguesa, que apresentam níveis mais elevados de eficiência e estão, ainda, obrigados a um maior rigor na “prestação de contas”.

É, por isso, essencial que sejam integrados na utilização dos recursos económicos disponibilizados para implementar melhorias no setor da água, já que terão capacidade para gerar conhecimento e valor acrescentado, passível de ser partilhado com o restante setor da água, num caminho conjunto que leve a criar um cenário “impressionante”, pela positiva, no combate às ameaças que a seca e restantes fenómenos climáticos irão impor de forma cada vez mais presente.