Cristina Roldão tem manifesta tendência para subscrever e difundir tudo o que possa servir para denegrir a imagem do Portugal dos tempos coloniais. Os portugueses foram os maiores negreiros da era colonial? Cristina Roldão rejubila com isso — quanto pior melhor — e reforça a dose. Em vez dos 4,5 milhões de escravos que o país efectivamente levou, à sua reponsabilidade política, para a colónia do Brasil através do Atlântico, atribui-lhe 6 milhões. Avisada por diversas vezes de que esse número estava errado e resultava duma tendenciosa soma dos quantitativos de Portugal e do Brasil já independente, e já senhor das suas opções políticas, Cristina Roldão continuou teimosamente a insistir no erro.

No debate que recentemente tivemos na RTP1 também caiu por duas vezes em erros, que aqui não irei referir nem corrigir porque o debate teve o seu próprio espaço e tempo. Fez-se, está feito. Mas no artigo que escreveu no Público, logo na ressaca desse debate, e no qual se insurge contra a resistência portuguesa a aceitar reparações — e anseia por uma salvífica directiva europeia ou da CPLP que venha forçar Portugal a aceitá-las —, Cristina Roldão voltou a transmitir ideias completamente erradas e tendentes a apoucar a memória que o país tem do seu passado. Escreveu, a respeito da demora ou relutância dos actuais portugueses em aceitar as referidas reparações, que tudo isso lhe faz lembrar uma história já vista quando “Portugal foi obrigado (sic) a abolir a escravatura”. Ora isto é completamente falso, como se explica detalhadamente nas páginas 43 e 44 deste livro e já foi abordado num artigo no Observador no contexto de uma réplica a Francisco Bethencourt.

Portugal foi de facto coagido, por pressão britânica, a actuar contra o tráfico trans-oceânico de escravos. Esse tráfico era um problema internacional, que se processava num espaço aberto a todas as nações — o Atlântico — e que envolvia vários países. Os ingleses podiam pressionar e coagir Portugal a que resolvesse depressa essa questão porque, entretanto, o nosso país assinara vários tratados e assumira, nesse âmbito, vários compromissos com a Inglaterra. Num desses compromissos — o tratado de 22 de Janeiro de 1815 — o governo português obrigara-se, até, a fixar, em futuro acordo com a Grã-Bretanha, o período em que o tráfico haveria de cessar totalmente nos seus domínios. Essa e outras estipulações em tratados e convenções forjaram uma apertada rede de compromissos que Portugal cumpriu mal ou não cumpriu de todo, e que levaria a uma medida de força por parte da Inglaterra (a lei de Palmerston), a partir da qual, então sim, Portugal começou efectiva e eficazmente a combater o tráfico negreiro.

Mas quanto à abolição da escravatura — isto é, do estado de escravidão — a que Cristina Roldão se refere, Portugal não assinara tratado algum nem tinha qualquer compromisso político com os britânicos. Nem Londres tinha qualquer pretexto ou alavanca legal para interferir num assunto que era estritamente nacional, inteiramente interno a cada estado. O ritmo que Portugal seguiu na emancipação dos seus escravos coloniais foi aquele que decidiu ou conseguiu seguir. Foi o seu próprio ritmo e as leis que aprovou resultaram da sua própria vontade e dos arranjos políticos internos. A Inglaterra não meteu prego nem estopa nas decisões dos governos e das Cortes portuguesas, nem podia fazê-lo pois não tinha base legal para tanto. O caminho que Portugal seguiu nessa matéria foi um caminho lento, como o de quase todas as outras potências coloniais. Das primeiras propostas de lei até à abolição total passaram-se cerca de 40 anos, mas esse caminho foi percorrido pelos políticos portugueses sem empurrões ou coacções vindas de fora. Portugal não foi forçado. A emancipação dos escravos foi feita degrau a degrau, de forma muito gradual, e foi uma vitória da moral e da política portuguesas, aprovada por aclamação nas Cortes, ainda que o seu resultado final tenha ficado aquém dos objectivos iniciais de Sá da Bandeira, o maior abolicionista português, e um nome que a cultura woke esqueceu ou removeu de cena e que — espero não me enganar — Cristina Roldão nunca referiu nos vários textos que tem escrito sobre este tema.

A versão woke da história da escravatura e da sua abolição assenta numa série de apagamentos selectivos, em premissas falsas (ou não verificáveis) e numa teoria de raiz marxista, estribada nas ideias de que a escravatura transatlântica teria estado na origem de copiosos lucros e na génese do racismo, ideias que ainda há dias critiquei a propósito de um artigo de Miguel Vale de Almeida, um dos arautos ou divulgadores da dita teoria. A versão woke assenta, também, na errada convicção de que o tráfico transatlântico de escravos seria o inigualável pináculo da nocividade, diferente de todos os outros, porque teria supostamente estruturado desigualdades e violências que perduram até ao presente (e basta-nos pensar no sistema de castas indiano para saber que, infelizmente, há vários outros casos de desigualdades e violências, estruturadas no passado, que perduram até hoje). E a versão woke da história da escravatura apoia-se, ainda, em falsidades e deformações como a dos 6 milhões, que já referi acima. Com a ideia de que Portugal teria sido forçado a abolir a escravatura Cristina Roldão acrescentou mais uma mentira à extensa lista de falsificações da história da relação de Portugal com as suas colónias.

Estou certo de que não o fez por astúcia ou má-fé. Terá sido apenas algo que resultou de uma explosiva mistura de militância e de desconhecimento. Cristina Roldão não sabe o suficiente sobre tráfico de escravos, escravidão e respectivas abolições para falar sobre esses assuntos de forma tão categórica. O facto, porém, é que o faz frequente e equivocadamente, e, ao fazê-lo, introduz ruído no circuito e induz os seus leitores em erro.

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