Há cerca de três meses, Luca Argel, uma pessoa que se apresenta a si própria como “cantautor brasileiro radicado em Portugal”, veio incentivar Marcelo Rebelo de Sousa a pedir desculpa pela escravatura. Luca Argel fez esse seu desafio de duas formas engenhosamente combinadas: através de uma canção e de um artigo, que vieram a público exactamente no mesmo dia, num esplendor de estereofonia woke.
Terá Marcelo Rebelo de Sousa sido sensível ao apelo do cantautor brasileiro? Terá querido agradar mais uma vez ao visitante Lula da Silva e à sua comitiva que já estavam de partida? Terá sido vencido pela pressão da nossa extrema-esquerda ou por razões menos evidentes? Não sei responder. O que é certo é que, no seu discurso de 25 de Abril, na Assembleia da República, Marcelo, indo na corrente politicamente correcta destes tempos que vivemos, e falando como representante máximo do Estado português, pediu desculpa ao Brasil pela escravatura e, dando um passo maior que a perna, decidiu assumir “responsabilidades para o futuro” pela sua existência nesse território (e, também, pela exploração dos índios e pelo sacrifício dos interesses da colónia Brasil). Enfiou, assim, uma das várias carapuças que o Brasil anda há muito a tentar enfiar na cabeça de um velho país que foi colonizador. De facto, há uma antiga corrente de pensamento no Brasil que, sacudindo a água do próprio capote, tende a atribuir todos os malefícios e limitações de que o país sofre e sofreu ao antigo colonizador, e Marcelo deu gás e corda a essa corrente. Fez mal. Equivocou-se, pois ainda que seja eticamente aceitável ou, até, recomendável, não faz sentido histórico e é um salto político sem rede pedir unilateralmente desculpa pela escravatura a uma sociedade e a um país que a praticavam e continuaram a praticá-la já depois de se terem visto livres de Portugal.
Vejamos isso um pouco mais de perto:
Logo em 1823, no contexto de uma Representação a apresentar ao corpo legislativo brasileiro, José Bonifácio de Andrade e Silva, o patriarca da independência do novo país, encorajou os seus concidadãos a que pusessem fim ao crime do tráfico negreiro e fossem abolindo gradualmente a escravidão. Porém, não foi isso que, já liberto da tutela portuguesa, o Brasil fez. E não o fez apesar de, em 1826, ter assinado um tratado com o Reino Unido para suprimir completamente o tráfico de escravos. Esse tratado foi letra morta ou, como se dizia na época, foi apenas “para inglês ver”. As autoridades brasileiras não aplicaram a legislação anti-tráfico, fecharam os olhos à importação massiva de escravos e, por isso, de 1822 em diante, entraram 1,3 milhões de africanos escravizados no Brasil independente.
Em 1835, no contexto da revolta dos (escravos) Malês, o representante brasileiro em Lisboa, solicitou a cooperação portuguesa no combate anti-tráfico, mas, no final desse ano, passado que estava o susto da revolta, essa ideia caiu e não voltou a ser aventada. Ou seja, por norma, o Brasil não procurou chegar a acordo com Portugal para pôr fim à chegada de escravos, muitos deles provenientes de zonas da costa africana administradas ou reivindicadas por Portugal. Pior. Quando, a partir de 1840, a Armada portuguesa começou efectivamente a apresar navios negreiros brasileiros nos mares e costas de Angola ou de Moçambique, o governo português viu-se bombardeado por queixas do seu homólogo brasileiro, que considerava esses apresamentos ilegais por serem supostamente feitos fora das águas territoriais ou por outros motivos igualmente discutíveis. Em conformidade, e a fim de evitar desinteligências e pendências com o Brasil, os governos de Lisboa ordenaram aos comandantes navais portugueses que não apresassem navios brasileiros senão quando fossem incontestavelmente negreiros e estivessem fundeados ou pairando nas águas consideradas como pertencentes à Coroa de Portugal.
É verdade que entre Brasil e Portugal persistiam estreitas ligações e que uma parte do tráfico transatlântico corria pelas mãos de aventureiros portugueses residentes no Rio, em Salvador e noutras cidades brasileiras, mas só o Brasil estava em posição e tinha meios para pôr fim ao tráfico negreiro, como, aliás, ficou provado em 1850, quando, sob fortíssima pressão inglesa, os brasileiros aprovaram e começaram a aplicar a chamada Lei Eusébio de Queirós, que extinguiu efectivamente esse tráfico num curto espaço de três anos. O estado de escravidão, esse, manteve-se por mais 35 anos, sendo abolido apenas em 1888, o que significa que o Brasil foi o último país do Ocidente a pôr fim à escravidão no seu território.
Perante este quadro, a pergunta que coloco é a seguinte: faz algum sentido Portugal pedir desculpa ao Brasil pela escravatura? A meu ver, e excepção feita aos aspectos éticos da questão, não faz. Sobretudo quando nunca se viu (que eu saiba) qualquer vontade do Brasil em pedir desculpa a Portugal por ter continuado a comprar escravos na África portuguesa, sabotando os intermitentes e geralmente frágeis esforços das autoridades portuguesas para estancar esse comércio proibido.
Sempre fui contrário a pedidos de perdão por factos ocorridos há muito tempo. Esses pedidos terão carga política, ideológica e marcadamente religiosa, mas não têm razão de ser histórica. De qualquer forma, tem-se insistido, com frequência, em que sejam apresentadas desculpas a África, o continente que, por acção conjunta e muitas vezes simultânea de negociantes árabes ou berberes, de chefias da África subsariana e dos negreiros ocidentais, foi privado de milhões de seres humanos numa emigração forçada de enormes e trágicas dimensões. E, efectivamente, já houve dirigentes políticos ou espirituais que vieram, por essa razão, pedir desculpa a África e aos africanos. Mas pedir desculpa ao Brasil, “the very child and champion of the slave trade”, como lhe chamou, em 1822, o grande abolicionista inglês William Wilberforce, é uma novidade, suponho eu, e um absurdo só compreensível por voluntarismo, excesso de zelo e desejo de agradar.
Mais absurdo ainda, a meu ver, é assumir “responsabilidades para o futuro” pela escravatura. Que quer isto dizer? Quererá Marcelo arcar com os males dos outros e, à semelhança dos nossos activistas woke, transferir a responsabilidade histórica brasileira no que à escravatura diz respeito, para as costas largas do simpático e hospitaleiro Portugal? Marcelo Rebelo de Sousa não especificou o que é que estas “responsabilidades” implicam, mas isso pode funcionar como um cheque em branco. Adverti, logo ao terceiro ou quarto artigo que escrevi sobre este assunto, que a seguir aos pedidos de perdão viriam as exigências de reparações materiais, indemnizações financeiras e outras compensações. Esse risco existe pois estas declarações do PR, ainda que bem intencionadas e inseridas num bom discurso, globalmente correcto, foram mal pensadas e muito insensatas.
Aliás, se passaram relativamente despercebidas à generalidade dos nossos comentadores, elas foram imediatamente percebidas, valorizadas e politicamente exploradas no estrangeiro, onde estão em destaque nas agências noticiosas e sites internacionais, tendo sido ampliadas — ampliação que o próprio Marcelo sugeriu — para abarcar não apenas a relação de Portugal com o Brasil, mas todo o envolvimento português na escravatura. A cadeia Al Jazeera, por exemplo, noticia que Marcelo Rebelo de Sousa é o primeiro líder português a pedir desculpa pelo papel central que os portugueses tiveram no tráfico transatlântico de escravos, e a reconhecer que o país devia assumir responsabilidades por esse facto. No Brasil, como era expectável, Silvio Almeida, o actual ministro brasileiro dos Direitos Humanos e da Cidadania, rejubilou com as declarações do nosso PR. Considerou que Marcelo tinha dado “um passo extremamente positivo” e sublinhou, como se este assunto fosse alheio aos antigos brasileiros, e como se eles tivessem sido vítimas passivas das vontades do colonizador, que o Brasil continua a sofrer “os reflexos de uma herança da escravidão”.
Entre nós os activistas reagiram logo. A luso-moçambicana Paula Cardoso, fundadora da rede digital Afrolink, apreciou o simbolismo das palavras de Marcelo, mas lamentou que não tivessem sido acompanhadas por “medidas e compromissos” concretos. E Cristina Roldão veio, com o seu radicalismo habitual, zurzir o PR pelo que disse e pelo que não disse, por ter ficado aquém do que os activistas exigem, e por se ter atrevido a falar nas coisas boas que os portugueses também haviam feito, como se quisesse equilibrar o deve e o haver, e esquecendo que elas haviam sido feitas “pela bala, estupro e catequização jesuíta”.
Veremos o que o futuro nos reserva nesta área, mas, em pezinhos de lã e com toda a bonomia do mundo, no passado dia 25 de Abril de 2023 Portugal pode ter dado um tiro no próprio pé. Em Abril de 2017, de visita ao Senegal, Marcelo Rebelo de Sousa não atendeu às sugestões para que pedisse formalmente desculpa pelo envolvimento de Portugal na escravatura de africanos. O que fez foi lamentar a violência e iniquidade dessas práticas, mas recordou, também, que o nosso país abolira a escravatura no território metropolitano, em meados do século XVIII, se bem que só no século XIX tivesse alargado essa abolição aos territórios coloniais. Acrescentou que, ao fazê-lo, o país tinha reconhecido o que houvera de injusto e de condenável no “comportamento anterior”. Essas suas declarações foram muitíssimo criticadas pela esquerda woke, mas, do meu ponto de vista, foram adequadas e elogiei-o por isso num artigo intitulado Marcelo e a escravatura: 20 valores. Agora, no discurso que fez na Assembleia da República, o PR pediu desculpa ao Brasil pela escravatura — e, por analogia e extensão, a todas as outras antigas colónias ou províncias ultramarinas portuguesas — e decidiu assumir responsabilidades pela sua existência. Não sei o que o terá feito mudar de opinião, mas esteve mal. Esta sua nova posição é seguidista, historicamente absurda e, temo-o, politicamente desastrada. Não posso, por isso, deixar de reprová-lo.