Ao Eduardo Veloso (1928-2022) 

1No meio deste alucinante início de ano político de 2023 muitos registaram, e bem, que a atitude pública do Presidente da República em relação ao governo mudou cento e oitenta graus. Paradoxalmente, ou talvez não, Marcelo foi também, a par dos protagonistas políticos (PS, PCP, BE e PEV), essencial para que um governo minoritário, apoiado numa geringonça funcionasse durante seis anos. Agora, em situação de maioria absoluta tem sido a verdadeira oposição ao governo e sobretudo uma fonte de bom senso em relação a casos envolvendo membros do governo. Porém, aquilo que ninguém parece reconhecer é que Marcelo está, neste momento, a atuar no nosso regime parlamentar como se de um regime presidencial se tratasse. Muitos acham natural que o Presidente relembre que possui a “bomba atómica” e dê um prazo de validade do governo de um ano e depois logo se verá como está o governo a governar, como está a oposição a qualificar-se para ser uma alternativa e, naturalmente, como estão as sondagens. Não, não é natural num regime parlamentar, e comporta elevados riscos. Mas já lá vamos.

2Os eventos associados com a demissão da secretária de Estado Alexandra Reis, que culminaram com o maior facto político desta crise – a demissão de Pedro Nuno Santos – e se prolongaram com a reformulação governativa, eram facilmente previsíveis que rebentariam em escândalo público. Uma indemnização, por mútuo acordo, quando se dispensa alguém antes do final do contrato de trabalho parece-me natural. O problema maior não foi o pagamento de uma indemnização de meio milhão – apesar de ser um valor que é obviamente inalcançável para 99% dos portugueses – por parte de uma empresa pública a recuperar com o dinheiro dos nossos impostos. O que não parece admissível é que de imediato após pagamento dessa choruda indemnização, se entre em processo de concurso na CRESAP para seleccionar essa mesma pessoa para outra empresa pública e que ,passados escassos meses, essa pessoa seja secretária de Estado com a tutela da TAP dirigida pela pessoa com quem se incompatibilizou. Já agora, Christine Ourmières-Widener, foi escolhida pelo seu currículo, não por ser uma comissária política e está aparentemente a fazer um bom trabalho. Poderá ter cometido alguns erros neste processo, mas a sua equipa deve ser mantida a menos que se queira pôr em causa a recuperação da empresa e pagarmos mais uns bons milhões de indemnização. Para insanidade já basta o que basta. A questão a colocar sobre a saída de Alexandra Reis (e agora de Carla Alves) é esta: como foi possível passar o escrutínio político da equipa de António Costa?  Parece-me simples. Não houve escrutínio. Estou certo que António Costa terá aprendido a lição e adoptará procedimentos internos que obviamente não passarão por Marcelo Rebelo de Sousa como desejaria.

3Discordo, porém, do Presidente e de muitos comentadores que criticam esta remodelação ao nível ministerial que me parece resolver bem o vácuo criado pela saída de Pedro Nuno Santos (PNS). António Costa fez bem em acabar com o super-ministério de PNS, dada a relevância de execução do PRR e em particular da necessidade de dar grande relevância política à habitação que, como referi aqui no último artigo, é um dos maiores problemas atuais do país, a par do fraco crescimento económico. A crítica principal a esta remodelação é de António Costa ter usado a prata da casa ao escolher João Galamba e Marina Gonçalves para tutelar as duas pastas das infraestruturas e habitação respetivamente. Sempre defendi a importância do conhecimento científico e técnico na política, mas não há bela sem senão. Um ministro se for um técnico deve ter sensibilidade política e aprender política depressa e há casos de sucesso (como Mário Centeno) e de insucesso (Vítor Gaspar). Se for político deve perceber que há hoje uma dimensão técnica muito relevante na política e que deve rodear-se também de técnicos capazes. Sobretudo e independentemente de serem técnicos ou políticos, uma ministra ou um ministro, devem ter capacidades para o cargo e não tenho dúvidas em afirmar que quer João Galamba quer Marina Gonçalves são dos melhores quadros que o PS tem. Galamba terá sobretudo que controlar os seus impulsos, nomeadamente nas redes sociais, e Marina de perceber que implementar uma estratégia para responder ao grave problema da habitação exige quer uma boa articulação com políticas transversais a vários ministérios (e.g. Finanças, Ambiente) quer com as autarquias.

4Os constitucionalistas (G. Canotilho e V. Moreira; J. Reis Novais e R. Medeiros e J. Miranda) Canotilho dividem-se em designar o nosso regime democrático como semi-presidencialista ou parlamentar. Canotilho e Miranda, evoluíram na designação e passaram a designar de parlamentar (na 4ª edição da CRP Anotada) o que acompanhou a diminuição de poderes do Presidente da República (PR) em várias revisões constitucionais. Isto significa, na essência, que o Presidente nomeia o primeiro-ministro (PM), que o PM é responsável pela escolha dos seus ministros que propõe ao PR para serem nomeados e fundamentalmente que o governo, na sua totalidade, responde politicamente perante a Assembleia da República. A demissão do governo para “assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas” é uma válvula de escape da nossa constituição para acudir a situações muito excepcionais. Concordei com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa quando dissolveu a Assembleia da República, embora a isso não fosse obrigado, pelo facto de BE e PCP rejeitarem o Orçamento. Ao fazê-lo, estes partidos davam o sinal oficial da morte da solução política da geringonça que exigia uma nova auscultação dos portugueses. Concordarei, caso António Costa decida sair antecipadamente do governo, que o PR dissolva a Assembleia da República (AR), pois a maioria absoluta foi dada ao PS, mas ao PS de António Costa. Discordo absolutamente das declarações do PR, amplificada pelos media, de que o Presidente dá um ano a António Costa e ao seu governo para mostrar o que quer fazer e que daí extrairá consequências. Isto não promove a estabilidade política e contribui para uma profecia auto-realizável. Numa democracia parlamentar, repito, os governos respondem perante o parlamento. Acredito na inteligência do Presidente da República e que esta pressão que está a exercer sobre o governo destina-se a melhorar o seu desempenho, algo distraído e adormecido nestes meses, e que está ciente dos enormes riscos associados a uma eventual demissão do primeiro-ministro em funções num governo de maioria absoluta daqui a pouco mais de um ano.

* O Eduardo Veloso é o último dos bons e chegados amigos “católicos progressistas” que se opuseram à ditadura e que nos deixou. Morreu prematuramente, apesar dos seus quase 95 anos, que faria neste 6 de Janeiro. Este país não é decididamente para velhos, mesmo que estejam em boas condições intelectuais…! Aquando do agraciamento com uma Ordem atribuída pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa (após outra por Jorge Sampaio), o Observador publicou aqui um excelente artigo de Rita Ponce que dá para perceber a maravilha desta pessoa. R.I.P amigo Eduardo.

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