A Matemática num país está saudável quando: há investigação de topo; há divulgação que a desvenda atraente; e há ensino que a oferece de forma sequencial, estruturada e clara. É a regra de 3 simples.

Como estamos em Portugal? Temos “muito bom” a investigação e divulgação, logo… devíamos também ter “muito bom” em ensino. Mas não.

Antes do porquê, a questão: “Quem se deve preocupar?” – Primeiro, pais e professores. Vão perceber já a seguir.

“Muito bom” a INVESTIGAÇÃO. Nestes dias, 700 participantes do Encontro Nacional organizado pela Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) podem ouvir 18 investigadores de ponta internacionais, quatro deles Medalhas Fields (o Nobel da Matemática) em sessões plenárias. Desses 18, três são portugueses. Estão pela força do seu prestígio científico, não por nacionalidade. E 200 outros investigadores muito prestigiados, portugueses e estrangeiros, em sessões paralelas. É o resultado de um trabalho de décadas, quando nos anos 80 se orientaram os doutorandos para universidades de referência nos EUA, Reino Unido, etc., e é o reflexo de uma comunidade de matemáticos profissionais portugueses cada vez mais considerada no mundo.

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“Muito bom” a DIVULGAÇÃO. Temos as olimpíadas e o campeonato nacional de jogos matemáticos a mover dezenas de milhar de jovens, temos um programa de TV (Isto é Matemática) muito popular e com centenas de episódios, vários dos nossos divulgadores foram distinguidos inclusivamente com prémios internacionais, um popular canal youtube é de matemática (Mathgurl), e estão também no Encontro Nacional alguns impressionantes divulgadores europeus, como Rinus Roelofs cujas esculturas matemáticas aparecem um pouco por todo o lado (ver Google images).   

“Muito bom” a Dedicação ao ensino. Pelo segundo ano letivo consecutivo os professores foram chamados a lecionar em circunstâncias que exigiam um esforço brutal e enormes sacrifícios pessoais, mas, lamentavelmente, antes de qualquer estudo sério ou análise fina do problema, decretou-se que falharam e há pois que “recuperar as aprendizagens”.

É também prova da dedicação, o facto de mais de 200 professores do ensino básico, secundário e universitário, residentes em Portugal ou não, corresponderem ao apelo da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) para oferecerem aulas em regime de voluntariado aos alunos a quem a pandemia privou de aulas de Matemática. Deram palestras, aulas e apoio aos alunos mais necessitados com o propósito firme de a ninguém deixar ficar para trás.

Seis equipas de professores construíram outros tantos testes-SPM com características de exame nacional, usados por mais de 100 escolas e agrupamentos, num universo de mais de 30 mil alunos dos 4º, 6º, 9º, 10º, 11º e 12º ano, com avaliação independente. A prova estimula o sistema (alunos, pais, professores e direções), permite autoconhecimento à escola localizando em contexto os seus “mais” e os seus “menos” para assim poder melhorar. Recorde-se que os exames finais nacionais do 4º e 6º foram abolidos em 2015 e que o do 9º foi suspenso pela pandemia. Estas provas da SPM constituem por isso um repositório precioso de dados para, entre outros, estudo do impacto da pandemia.

E como estamos em geral no ENSINO? Há uma ciência do bom ensino da Matemática que amealha as experiências positivas das escolas de todo o mundo. Em Portugal, o que de melhor se fazia no mundo a ensinar Matemática, foi incorporado intensivamente desde o início deste século num conjunto de medidas de diversos governos e cores diferentes. Portugal tornou-se num caso de sucesso estudado pelo estrangeiro e os alunos portugueses alcançaram o melhor resultado de sempre nos testes internacionais em 2015. Porém, em 2019 Portugal caiu vigorosamente e em todos os níveis na última avaliação internacional disponível.

Que aconteceu? Várias coisas.

  1. O Estado português extinguiu os exames nacionais do 4.º e do 6.º ano, impedindo cada escola de aferir em contexto a qualidade do seu trabalho, na prática dissolvendo a dinâmica criada no passado;
  2. O Estado português, em 2018, definindo as Aprendizagens Essenciais (AE18) de cada disciplina, eliminou cerca de 20% do programa de Matemática e suprimiu pontos da matéria indispensáveis à compreensão de matérias posteriores;
  3. Reagindo à avaliação negativa internacional de 2019, é anunciado no final de 2020 a substituição do programa que dera os melhores resultados de sempre por um novo programa cuja discussão pública terminou há duas semanas. É absoluta e humanamente impossível fazer um trabalho desta natureza em tão pouco tempo. E o resultado é uma proposta muito problemática; segue-se uma amostra de algumas dificuldades que podem ser facilmente compreendidas por não matemáticos (mas pedimos desculpa por usar uma ou outra expressão mais técnica):
  • Promove a Matemática como pensamento indutivo, quando a razão de ser do ensino da Matemática é treinar o pensamento dedutivo no duplo sentido em que a pessoa aprende a extrair consequências profundas e subtis dos dados que tem e aprende a fazer o caminho inverso ao identificar (e possivelmente questionar) os pressupostos que levaram a essas conclusões;   
  • Opta pelo método de “ensino pela descoberta”, requentando teorias caducas e comprovadamente nocivas. Note-se que um dos proponentes desta abordagem (professor em Harvard) lançou o projeto piloto de levar os alunos descobrir por si o mal de mentir, roubar ou drogar-se; a experiência gerou ladrões, mentirosos e drogados e o autor renegou a experiência, apelando a que não fosse usada nas escolas. No novo programa, este erro educacional vai ao extremo absurdo de dar todos os passos para o aluno descobrir a fórmula resolvente, mas a fórmula é abolida;
  • Não reconhece a diferença crucial entre definição em sentido metafísico (que vai da palavra ao objeto) e a definição em sentido matemático (que vai do objeto ao nome), consagrando a misconception desgraçadamente muito divulgada de que se pode conhecer um objeto matemático pelo nome;
  • Elimina a numeração romana sem perceber que conhecer esse sistema decimal não posicional é o que melhor permite realçar as virtualidades de um dos maiores avanços no conhecimento: o sistema decimal posicional. Não, não é só pela preocupação de continuar a perceber MCDXCIX no monumento…
  • Omite as diferenças e correspondências entre grandeza em escrita corrida ou mista e a sua natureza decimal/sexagesimal, dificultando (ou impedindo) saber qual o volume de um litro, contar o tempo e contar o dinheiro, dinheiro que passa a ter um tratamento despudoradamente ideológico;
  • Na resolução de problemas, recupera as ideias de há 80 anos de um brilhante matemático húngaro, mas sem as atualizar da forma em que foram amplamente aprofundadas e generalizadas nos países que se saem sustentadamente melhor nas avaliações internacionais, e recorre também a ideias dispersas em jornais dispersos de um estatístico americano, aparentemente sem perceber que educação não é divulgação;
  • Não assegura que, muito mais do que um conjunto desconexo de momentos pedagogicamente aliciantes, o ensino da Matemática tem de ser um processo nitidamente estruturado e com uma sequência muito bem ajustada, pois só assim se permite à criança e ao jovem apropriar-se significativamente, e com tranquilidade, dos conceitos mais simples, rumo aos mais abstratos, e saber exatamente o que há a saber em vez de ficar tudo vago, nebuloso e misterioso, e onde o 20 é a nota reservada ao professor em vez de ser reservada ao aluno que sabe tudo o que lhe foi claramente dito que deveria saber;
  • Diz querer promover o pensamento computacional, mas como se deprecia os algoritmos? Aliás, consagra para a subtração o chamado algoritmo americano que a investigação provou propiciar mais erros e menor rapidez de cálculo, para além de ser um inferno responder a esta pergunta trivial: que idade tinha em 2000 quem nasceu em 1963? O algoritmo americano chegou a ser proibido nos EUA, não se consegue ligar ao algoritmo sintético da divisão e, portanto, este é abolido no programa agora proposto;
  • Todo o sistema (aulas, metodologias, livros, apoio, rotinas, etc.) depende do programa e por isso este tem de ser muito estável, o que só se consegue com programas science based e resultantes de um amplo consenso que possa sobreviver a mudanças de governos. Singapura, cujos alunos têm no exame do 4.º ano, resultados que só os nossos alunos do 7.º ou 8.º conseguiriam – isto deve fazer refletir muitas pessoas! -, tem essencialmente o mesmo programa e os mesmos manuais há mais de 30 anos.  

É tudo? Não. Nova surpresa no passado dia 6 de julho. Quando faltam dois escassos meses para o começo do ano letivo, o Estado português revoga o programa de todas as disciplinas do básico e secundário. E propõe o quê em alternativa? As Aprendizagens Essenciais de 2018, um conjunto de tópicos cuja densificação estava no programa agora revogado. O que vai acontecer no próximo ano? Os professores terão paradoxalmente de recorrer a programas revogados. Os manuais estão de acordo com o revogado pelo que têm matéria em excesso nuns casos e por ordem trocada em outros, e assim o aluno precisará de livros de anos diferentes. Para além de outros problemas conceptuais e práticos, esta alteração ocorre quando já terminou a discussão sobre um novo programa para o ano letivo 22/23.

Todas estas alterações são prejudiciais aos alunos, famílias, professores, escolas, sistema, pelo que a educação deveria estar assente num pacto de regime que dê estabilidade e ponha Portugal a celebrar vitórias reais em vez de derrotas morais.

João Araújo é Professor Catedrático do Departamento de Matemática da FCT NOVA, Patrícia Gonçalves é Professora Catedrática do Departamento de Matemática do IST e Jorge Milhazes de Freitas é Professor Associado com Agregação do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.