Chama-se antinomia – do grego ἀντί (anti), “oposto”, e νόμος (nómos), “lei” – ao paradoxo pelo qual duas afirmações que se contradizem podem ser confirmadas como algo real em ambos os casos. É o que acontece com um par de contraditórias emoções do ser humano, que podem – ou melhor, devem – ser ambas vivenciadas simultaneamente. O princípio kantiano da não contradição não se aplica aos nossos sentimentos.
Será «A» a razão das minhas lágrimas? Ou «não A»? São ambas, pois é ao princípio da antinomia que obedecem as inquietações que diariamente experimentamos, razão pela qual vivemos imersos num constante e vão combate com a vida e connosco mesmos: procuramos a cada ocasião a lógica que regula os sentimentos conflituantes que vivenciamos e, frustrados, experimentamos sempre a exceção.
“Não são de hoje, nem de ontem, mas vigoram sempre, e ninguém sabe quando surgiram nem onde” diz Antígona sobre a contradição das leis não escritas que regulam as nossas vidas na tragédia homónima de Sófocles.
A razão emerge da irracionalidade. Não há limite sem liberdade. Não há amor sem dor, nem júbilo sem tristeza. E não há escolha que não arraste consigo uma palavra cortante e certeira: adeus.
Medeia nunca chorou tanto como quando se preparava para abandonar para sempre a sua família, a sua casa, a sua terra. E, simultaneamente, nunca foi tão feliz como quando se apaixonou por Jasão e decidiu partir com aquele estranho rumo a um país também ele desconhecido. Soluçava enquanto fugia do palácio onde nascera e fora criada, enquanto acariciava o leito e as belas paredes da sua infância com uma doçura que era já saudade. Diante dos seus últimos passos na Cólquida, os ferrolhos das portas abriam-se para si. Corria descalça em direção ao Argo pelas ruas da cidade que outrora a vira a brincar e que naquele momento assistia silenciosamente às lágrimas que lhe humedeciam o rosto. Iguais eram em intensidade a alegria e o desespero e “o coração batia-lhe como uma fúria pelo medo” de sentimentos tão opostos e dolorosos.
Até Mene, a Lua, se regozijou, maliciosa e triste, ao contemplar do alto a fuga de Medeia. Ela bem sabia o que sentia aquela menina, porque também ela nada mais faz do que vagar inquieta pela abóbada celeste, perpetuamente dividida entre a divina tarefa de iluminar o mundo durante a noite e o amor terreno e humano por Endimião. É precisamente quando não consegue resistir ao seu desejo que somos forçados a viver as nossas noites negras sem lua: Mene cede à paixão e corre para se esconder no Monte Latmos, para reencontrar o homem que ama. Gritou-lhe a Lua: «Corre, Medeia, e prepara-te para suportar esta dor, por sábia que sejas, corre!»
A bordo do Argo, Medeia deixou-se embalar pelas ondas nocturnas do mar e pelos braços fortes daquele que escolheu para seu companheiro. Estava feliz por partir, mas desesperada por deixar a sua terra natal. Estendia as mãos trémulas em direção à costa, à medida que esta ia ficando cada vez mais longe até se fundir com o horizonte.
Escolher ser algo diferente daquilo que somos, ser quem queremos, envolve sempre um abandono definitivo. Chega um momento em que não temos escolha a não ser dizer adeus às pessoas que amamos ou que já não amamos, aos nossos amigos, à nossa cidade, até àqueles que sempre odiámos. No entanto, nunca mais ouvir ou ver alguém nas nossas vidas é talvez a mais difícil das provações.
Podemos dizer adeus a tudo o que aconteceu, mas nunca haverá uma separação real. As pessoas com quem convivemos, as que amámos e odiámos, contribuíram para moldar quem somos. Tornaram-se parte de nós. Melhor, elas são nós. As nossas memórias estão tão intimamente ligadas entre si que as palavras que usamos, a música que ouvimos, a pessoa que amamos, já não têm uma vida própria, independente daquele em que nos tornámos. A partir do momento em que estamos neste mundo deixamos um pouco de nós em todos os lugares e qualquer indivíduo se torna parte de nós. Tudo o que nos acontece, portanto, é fecundo e perigoso, quase sempre doloroso, jamais neutro. Se pudéssemos sair da nossa história, mesmo que por um instante, talvez então a separação fosse possível, real. Mas tal sortilégio não consentem os deuses: podemo-nos alegrar e sofrer pelo exacto e mesmo amor, chorar e sorrir pela exacta e mesma escolha, viver o presente com saudade do passado – eis a nossa humana antinomia.
A invisível mochila da nossa vida passada – não importa quão curta ou longa ela seja – acompanha-nos na jornada. Compete-nos escolher quão pesada será, porque a memória desconhece a lei da gravidade. Poderá ser ligeira como uma pena ou opressiva como um fardo, dependendo de como soubermos viver a duplicidade do abandono, que é simultaneamente dor e libertação, liberdade e saudade e, sobretudo, medo.
Jamais poderemos existir sem carregar connosco a trouxa de quem fomos, de quem nos criou, de quem amámos e, mais tarde, de quem perdemos ou escolhemos perder. O preço seria não mais sermos viajantes que vão de um porto a outro nas nossas vidas, mas andarilhos, banidos de nós mesmos, necessariamente esquecidos do porto de onde partimos.
Matematicamente, só vale um, o oposto de dois. Um, o número da exclusividade que todos desejamos. Um, o número da solidão que tanto tememos – desabitados, abandonados, vazios, não importa se no nosso quarto ou em companhia de outros, sempre separados de alguém ou de alguma coisa.
É tão fácil a matemática – essa ciência exacta, dizem-me – do nosso sentir! Tão desarmante a sua capacidade de contar apenas até dois, dividir o nosso mundo entre singular e plural. E, contudo, quão difícil é dar um nome às coisas da vida antes que petrifiquem e não possamos mais movê-las.
Se esta noite virem uma menina a percorrer – descalça, pés ligeiros e dentes ainda tortos – as ruas da sua juventude rumo ao porto onde o Argo, enfunado pelo vento de feição, a aguarda, perguntem-lhe o que é que Mene, no alto céu, lhe grita.
Talvez ela sorria.