Segundo a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed), num relatório divulgado no passado dia 22 de Janeiro, apenas relativo ao período entre Janeiro e Setembro de 2021, foram vendidos em Portugal mais de 28 mil embalagens de antidepressivos e mais de 29 mil embalagens de ansiolíticos, em média, por dia, em 2021. São mais de 15,7 milhões de embalagens no total de psicotrópicos-ansiolíticos, sedativos, hipnóticos e antidepressivos – que representam um encargo para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) de 46 milhões de euros.

Em 2019, último ano pré-pandemia, foram vendidas perto de 20 mil embalagens, num total de encargos para o SNS de mais de 56 milhões de euros. Em 2020, foram vendidas mais de 20 milhões de embalagens, num total de encargos de mais de 58 milhões de euros. A pandemia pode explicar algum aumento, mas não é significativo pelos números disponíveis. O que vemos claramente é a enorme quantidade de medicação psicotrópica consumida pelos portugueses, em pandemia e fora dela. São números assustadores que nos deviam obrigar a reflectir e a criar estratégias para o evitar.

O que penso ser mais importante a retirar destes dados é o número subliminar.

Os milhares de pessoas, crianças e adultos, que passam neste momento por dificuldades psicológicas. É o valor silencioso deste relatório e que deveria ser o foco deste tipo de instrumentos.

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Tendo isto em conta, surge a evidente necessidade de alargar os serviços de saúde mental e psicológica à população em geral. Desmistificar o papel do psicólogo, perceber os seus contextos de actuação e a sua utilidade na saúde da pessoa ao longo de toda a sua vida. Se é fácil de perceber que a qualquer momento seja preciso um médico ortopedista ou um dentista, porque não pode a mesma normalidade ser atribuída a um psicólogo?

A resposta está na nossa estrutura de pensamento sobre a saúde.

A primeira linha de intervenção em saúde, seja ela física ou psicológica, são os médicos. Se lhe doer o joelho, vai ao médico. Se lhe doer as costas, vai ao médico. Porque vai ao médico se o que lhe “dói” é a sua mente? Se está triste? Se está ansioso? Não é minha intenção, de forma alguma, retirar a enorme importância que os médicos têm e o seu papel fundamental na longevidade humana. No entanto, da mesma forma como eu, psicólogo clínico, não tenho comigo um paciente que se queixa de uma tendinite no braço, não deve um médico acompanhar alguém que manifeste ansiedade, sinta depressão ou, até, que possua uma perturbação de personalidade. Muito menos medicá-lo sem a intervenção e indicação de um psicólogo, o profissional de saúde mental por excelência. Faço novo ponto de ordem. Não me estou a esquecer dos psiquiatras nem do seu importante papel. O que afirmo, uma vez mais, é que não devem ser estes a primeira linha de intervenção pois o paradigma médico é diferente da abordagem psicológica, centrada na pessoa, que os psicólogos usam, ao contrário da abordagem centrada no sintoma.

A medicação representa uma ferramenta rápida de intervenção para um sofrimento que se quer terminado. Fazer da medicação a primeira e única ferramenta de intervenção na dor psicológica é reduzir as formas de adaptação humanas e retirar a possibilidade da criação de estratégias individuais que acentuariam os bons resultados. No entanto, deve ser percebido que não cabe à pessoa em sofrimento a escolha aleatória da intervenção que para ela foi escolhida. Deve ser informada e opinar para poder decidir, mas caberá aos profissionais de saúde desta primeira linha de atendimento ter este cuidado de a orientar para a melhor solução, segundo a queixa apresentada. Claro que pode essa decisão passar pela medicação. Em situações de sintomas severos, a medicação é um importante aliado, mas sempre em aliança na adaptação e intervenção psicológica. Isto porquê? Porque a medicação retira a sensação física do sintoma, mas não a sua causa, psicológica. Ela existe na mesma, internamente, engavetada ou à solta na mente, mas mascarada pelo agente activo do psicotrópico.

O que sabemos hoje e nos dizem as mais recentes investigações na área da intervenção em saúde mental e psicológica é que a psicoterapia, ou qualquer outra forma de intervenção em psicologia clínica, são as formas mais eficazes de intervenção na redução do sofrimento psicológico e na promoção de bem-estar, não precisando de medicação para a obtenção de resultados positivos. Muito longe destes resultados, surge a opção de frequência psicoterapêutica e medicação em conjunto e depois ainda, a medicação só por si.

A solução passa por tornar os serviços de psicologia clínica e os seus profissionais como parte integrante dos cuidados primários do SNS, à semelhança do que fazem vários países do mundo, principalmente na Europa. Um exemplo disto é o Reino Unido, onde o psicólogo é um profissional de saúde na primeira linha de atendimento, com destaque central na intervenção psicológica, à frente das problemáticas do foro mental e psicológico e responsáveis pela avaliação, encaminhamento, prevenção e intervenção.

Com isto, podemos, logo na linha da frente nos cuidados de saúde, prevenir as dificuldades psicológicas severas, protegendo e respeitando a saúde mental e psicológica dos utentes ao agir directamente no seu mal-estar e sofrimento em situações tão diferentes como stress, ansiedade, depressão, perdas, traumas, entre tantas outras. Quanto mais rápida a identificação e a intervenção, mais rápidos e melhores os resultados. Para isto, é preciso que os psicólogos estejam no SNS, nos cuidados primários e tenham o seu papel atribuído e bem definido.

Aqui surge o outro dado que apontei: o valor gasto pelo SNS nas comparticipações dos medicamentos. Acrescem a estes valores os correspondentes aos honorários dos profissionais médicos, para trabalho que podia ser de psicólogos, bem como com as consequências das dificuldades psicológicas, como baixas psicológicas e abstinência no trabalho, bem como outros problemas de saúde física associados.

O Reino Unido volta a ser um excelente exemplo. Ao colocar os psicólogos na linha da frente, todos estes valores foram diminuídos com impacto significativo na economia nacional. Se na primeira linha de acção estiverem psicólogos, as quantidades de medicamentos prescritos baixarão abruptamente, diminuindo o valor gasto nas comparticipações. Além disto, existirá uma redução significativa das baixas psicológicas, bem como das abstinências no trabalho, resultando isto tudo em pessoas com maior bem-estar, mais saudáveis, mais motivadas, mais produtivas e mais realizadas.

A ideia de que a saúde não é apenas física, mas sim mental e psicológica, é um sinal de respeito pelas pessoas como indivíduos, apanágio das sociedades desenvolvidas. Esta mudança de paradigma levaria ao aumento do bem-estar da população e à evolução e desenvolvimento das populações e sociedades. A educação para a saúde mental não é apenas falar sobre ela. Isso não é suficiente. É um passo importante, mas é apenas o primeiro. É preciso agir, estar junto das pessoas e das populações e isso pode passar pela integração dos psicólogos nos cuidados primários.

Sem saúde mental e psicológica, não há saúde. Todos podemos beneficiar de ajuda em algum momento da vida. Se precisar de ajuda psicológica, não espere. Procure um psicólogo.