“Dona Maria, a senhora sente solidão?” – “Não, minha filha. Não sinto, não. A cabeça da gente é generosa. Pedindo, ela dá”. Aos 80 anos, Dona Maria Teles Ribeiro lançava o seu primeiro livro em acontecimento de festa e sucesso, no Rio de Janeiro. Tinha um filho diplomata, um filho empresário, uma filha cientista. Todos longe, em outros países, há muitos anos deles a mãe estava separada. Agora, em tempo de retiro, de resguardo e reflexão, recordo a conversa e a sábia frase de alguém que, nessa altura, já muito tinha vivido.
E penso no milagre da memória. Porque a memória pode ser a melhor companhia de doçura para o isolamento tão sofrido de tantos de nós, de todas as idades e gerações. Sinto que a contagem dos dias vai perdendo sequência e consciência nas novas tarefas do cotidiano, como se pequenos gestos esperassem por mim. O que foi supérfluo pode ser essencial, na revisão de todas as coisas. A revisão, além da minha vontade, vai-me abrindo as sensualidades do passado, quando dou por mim a pensar sobre o tudo e o nada que sou. Cada objeto, como se fosse gente e desde sempre estivesse à minha espera, é a surpresa que encontro no ímpeto de arrumação que me faz rever armários, gavetas, prateleiras que estavam esquecidos do meu cuidado. Não sinto medo, angústia, ansiedade. Não quero saber das ideias de catástrofe, sei sobre os números, sei sobre os sofrimentos, sei sobre a condição dos mais frágeis, longe da cidade conheço os casos, as solidões. Sei sobre as regras a cumprir, assumo a obediência ao recolhimento, com serenidade. Resisto às previsões mais pessimistas, às notícias mentirosas, à hipótese das conspirações contra a nossa civilização. Acredito que os países não acabam e que uma nova e melhor ordem irá acontecer neste sofrido mundo. Como será o futuro? O que vai mudar? O que irá ficar dos sentimentos e das emoções destas extraordinárias últimas semanas? Não exijo respostas para as perguntas que vamos fazendo, no fundo das nossas inquietações. E encontro agora, guardada nos meus papéis, a frase de Marguerite Duras: “Não sabemos para onde vamos. O que não é razão para não chegarmos lá.” Os autores, os escritores, os poetas não falham nas frases que vale a pena guardar.
Sofro as saudades do amor, do abraço, dos sabores do corpo. Na perdida liberdade de sair, de ir e voltar, o espaço da casa anulou o espaço da rua, o pensamento distrai-se da vontade, o tempo escorre, já inventei rotinas, as tarefas parecem mais fáceis. E a memória é a cumplicidade que me acompanha, me anima, me consola. Quem não tem lembranças de cenários, de paisagens, de festas e lágrimas? Lembranças de vozes, de brinquedos e brincadeiras, de colos e beijos, de cheiros e sabores de sopa quente? Lembranças das surpresas e dos medos, dos atrevimentos de experimentar e aprender? Carlos Drummond de Andrade, o poeta, disse-me uma vez que dentro de nós existe uma “geladeira”, um frigorífico onde vamos procurar as palavras, sempre que seja preciso. Acho que hoje, a palavra que encontro é esta. Memória.
No campo, onde estou, assisto à ressurreição da natureza em primavera de abril, na terra molhada de pingos e chuvas aparecem os verdes de vários tons, anunciam-se as cores, esperam-se as primeiras colheitas. Passado o tempo cristão de Quaresma, em provação de Semana Santa, acredito na Ressurreição como imagem de esperança para esse tempo de há-de vir.