Não é sobre o enredo da peça levada à cena no teatro nacional que me debruçarei, na comodidade do camarote de jubilado. É sobre o seu pano de fundo: os poderes da hierarquia do Ministério Público em matéria penal. Porque, não explicando tudo, por certo trará melhor luz ao palco.

Estava a proposta do novo Estatuto do Ministério Público ainda no Ministério da Justiça, mas já em fase de remate, quando chega mais um contributo que trazia no ventre o pomo da discórdia: a consagração normativa da exigência de que a intervenção hierárquica em processo penal fosse feita nos termos da lei de processo penal. Ao Ministério da Justiça terá parecido mera questão semântica, o mesmo se passando em sede de Parlamento. E o Estatuto veio à luz do dia com essa “inocente” configuração.

Não tardou que se levantassem vozes defendendo a tese de que, por causa dessa alteração e apesar da clareza constitucional, os poderes hierárquicos passavam, em matéria penal, a ficar limitados a assuntos genéricos e organizativos e que, em contraponto, se expandia o grau de autonomia decisória de cada magistrado. Isto é: deixariam de poder ser emitidas ordens ou instruções sobre casos concretos.

Foi o que quiseram ouvir alguns procuradores de base, que terão entrado por erro numa carreira constitucionalmente definida como hierarquizada, talvez por não terem conseguido acesso à judicatura. E alguns membros da hierarquia, por comodismo ou temor. É mais fácil deixar andar que co-assumir responsabilidades e é melhor não afrontar os poderes fácticos corporativos.

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Porque não houvesse unanimidade no assunto, coisa frequente e até saudável entre juristas, solicitou-se à Procuradora Geral da República que pedisse parecer ao Conselho Consultivo. Veio então este a concluir, por unanimidade, que (i) nada se tinha modificado em virtude das alterações legais produzidas; (ii) continuavam a poder ser dadas ordens ou instruções sobre aspetos concretos de um processo penal; (iii) sendo essa a única interpretação do Estatuto congruente com o princípio da subordinação hierárquica firmado na Constituição.

A Procuradora Geral da República, no uso dos seus poderes estatutários, emitiu uma Diretiva determinando que o parecer se considerasse doutrina obrigatória para os magistrados do MP.

Levantou-se então um torvelinho de contrainformação: que a autonomia do MP estava em crise a partir de agora e que uma longa manus se preparava para manietar a ação do MP na repressão dos poderosos.

Embalado por esta toada o SMMP optou, em 2020, de modo inédito, por intentar no Supremo Tribunal Administrativo ação impugnatória da Diretiva da Procuradora Geral da República. Vulnerabilizando com essa atitude, mais que nunca, a autonomia externa do Ministério Público na definição da forma de exercício da ação penal. E dando azo a que o diálogo, o aconselhamento e a troca de informação entre escalões se reduzisse drasticamente e se formasse um imenso arquipélago, com cada um na sua ilha, isolado ou mesmo autista.

Ora, o Ministério Público é uma magistratura de iniciativa e de intervenção articulada e em rede. E o poder de intervenção hierárquica, condicionador da autonomia interna e com ela em permanente e sensível concordância prática, funda-se em razões de equilíbrio e de eficácia. Equilíbrio enquanto contrapeso à irrecorribilidade das decisões do MP, ao contrário do que ocorre com as decisões judiciais. Eficácia porque só assim se logra a uniformidade na aplicação do direito que é pressuposto das sociedades democráticas, porque fator da igualdade dos cidadãos perante a lei. Eficácia ainda porque só no quadro de uma organização hierarquizada, funcionando de forma coordenada e não atomística, é possível gerar as sinergias adequadas ao enfrentamento do crime organizado e complexo da nossa contemporaneidade. Sem temores ou debilidades técnicas mas também sem empolgamentos ou maximalismos que desvirtuem a serenidade, a exigência e o rigor inerentes a um órgão de Justiça.

Foi este quadro de intervenção organizada, em equipa, que o legislador tomou como referência para atribuir ao MP a direção da investigação criminal no Código de Processo Penal de 1987. Se assim não fosse razões não haveria para retirar tais competências aos juízes de instrução criminal.

Claus Roxin, um dos nomes mais reputados da doutrina penal alemã, afirma que “seria contrário à paz jurídica que cada magistrado do MP pudesse, sem controlo, seguir a sua concepção jurídica, conduzindo a uma fragmentação da prática acusatória”. Outro autor, Horst Hund, assevera de modo mais impressivo, que a total independência dos magistrados do MP conduziria ao “primado dos inexperientes”, por falta de corretivos hierárquicos.

Em tempos de populismo não se demonize a intervenção hierárquica, porque ela propicia um melhor serviço à comunidade. E porque a vivência de quase meio século do MP em democracia não regista desmandos que autorizem qualquer labéu. Não há seguramente motivos para considerar que os membros dos diversos escalões hierárquicos estejam mais expostos ou vulneráveis às vicissitudes sociológicas dos sistemas de contacto do que os mais jovens e menos graduados. Mas há, ao invés, a presunção (ilidível, é certo), de que são mais experientes e sabedores, o que melhor lhes permitirá avaliar factos e imputações e antever consequências de precipitações quanto ao “momentum” de certos actos. Porque tal extemporaneidade, ainda que não frustre irremediavelmente o sucesso da investigação, redundará em dano pelas ondas de perturbação e clamor que desnecessariamente gerará. E ninguém se esqueça de que assuntos há de tal melindre que sete olhos são poucos para a sua eficaz e equilibrada avaliação.

Chegados a esta crítica situação, resta a esperança de que a Direção do Sindicato seja mais sensível aos superiores interesses da Justiça e da comunidade do que às reivindicações corporativas dos seus associados, suba a Rua de São Pedro de Alcântara e vá ao Supremo Tribunal Administrativo desistir da ação tão temerariamente intentada. É o mínimo.