Há precisamente vinte anos corria termos pelo DIAP de Coimbra um inquérito por corrupção e peculato que envolvia o presidente de um pequeno município, como corrompido, e um industrial da construção civil em fase de fulgurante ascenção, como corruptor.

O experimentado procurador titular do inquérito garantia-me que a prova indiciária recolhida era consistente, mas ambos sabíamos que, in illo tempore, era mais fácil fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que conseguir a condenação de um autor por crimes de colarinho branco.

Optámos então, nesse tempo em que a hierarquia do Ministério Público era chamada a opinar e decidir sobre questões de maior relevância, por aumentar a densificação da prova, tentando obter o testemunho do empreiteiro, agente activo da corrupção.

A troco dessa colaboração planeávamos outorgar-lhe um dos prémios consagrados na lei desde 1994 mas escassamente utilizados: a suspensão provisória do processo.

Encarregou-se da melindrosa abordagem ao empreiteiro o coordenador da PJ, que veio mais tarde a ser seu director nacional. A resposta que dele obteve deixou-o atónito: gostaria de colaborar, mas se o fizesse não mais conseguiria qualquer contrato na administração central ou local; espalhar-se-ia aos quatro ventos a sua acção delatora e a empresa deixaria de prosperar, se não entrasse mesmo em falência.

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Trabalhando há anos nesses assuntos, tivemos ali a confirmação do que já sabíamos: a grave anemia de que o país enfermava tinha origem nessa hemorragia interna, por onde ocultamente se lhe esvaíam as forças.

O nível de contaminação era já então enorme. Pedi então ao empresário que viesse falar comigo, trazendo a sua advogada. Anuiu e, com algum esforço, consegui mobilizá-lo, sem oposição da defensora mas com evidente terror da parte dele, para a colaboração que pusesse a prova ao abrigo das dúvidas que costumam assaltar os tribunais quando se discutem essas matérias.

O prémio foi-lhe outorgado, o julgamento fez-se com a sua relevante colaboração e o autarca veio a ser condenado em seis anos de prisão por corrupção, peculato e branqueamento, que efectivamente cumpriu em estabelecimento prisional comum. Coisa inédita até então e ainda hoje pouco frequente, a crer nas notícias de sistemática suspensão das penas de prisão aplicadas em casos semelhantes.

Quem sabe se por se tratar de um autarca de escasso peso político, o empreiteiro não viu confirmadas as suas piores expectativas. Continuou na senda do progresso empresarial e acabou, com outros autarcas, de norte a sul do país, implicado em vários outros crimes de igual natureza, alguns presumivelmente praticados com recurso a expedientes mais refinados.

Esta é, porém, apenas a ponta de um enorme iceberg.

Não admira, por isso, que estejamos cada vez pior. De fontes diversas, que não apenas a administração local (essa é apenas a face menos oculta, em razão da proximidade), a hemorragia oculta continua a brotar, com um caudal progressivamente maior, o dinheiro some-se e o país definha, ciclicamente agitado por súbitos relâmpagos de consciência que depressa se desvanecem até que, como diz Álvaro de Campos, “a vida de todos os dias retoma o seu dia”.

Isto é: o saque continua, pagamos impostos de primeiro mundo para ter serviços públicos de terceiro mundo, os nossos jovens são forçados a emigrar, a pobreza continua a alastrar e tudo se passa sob o nosso nariz, sem que nos levantemos decisivamente contra o mau cheiro. Ou haverá por aí um sopro de alma que inverta o rumo?