Quem, vindo de longe, desembarcasse nas praias lusitanas e não nos conhecesse ficaria a pensar que a democracia entrara subitamente em agonia por causa da Justiça. Nada menos certo, é o que me arrisco a tentar demonstrar por entre o ruído de contendores acantonados, com a maior concisão possível.

O Ministério Público (MP), órgão propulsor do exercício da justiça, detentor da ação penal e da direção da investigação criminal é, nos termos da Constituição, uma magistratura autónoma e hierarquizada. A autonomia externa, em relação aos demais poderes do Estado, é absoluta desde 1992, altura em que o Ministro da Justiça deixou de poder emitir instruções em matéria penal. Já a autonomia interna de cada um dos seus magistrados tem e sempre teve, desde pelo menos 1978 (data da primeira lei orgânica), que resultar de sensível equilíbrio com o dever de obediência a diretivas, ordens e instruções hierárquicas, isto é, não goza da natureza irrestrita da autonomia externa. O Tribunal Constitucional, em acórdão de 2011 proferido sobre arguição de inconstitucionalidade formulada pelo SMMP, não considera sequer traço essencial do figurino constitucional a existência dessa autonomia interna. E não deixa de ser curioso que o modelo de Procuradoria Europeia recentemente adotado também não.

No entanto, ao longo das últimas quatro décadas e meia, desde quando nem sequer ainda gozávamos de autonomia externa, lográmos construir um modelo que propiciou a cada magistrado um nível de autonomia decisória, isto é, um grau de atuação liberta de interferências hierárquicas que é incomparavelmente superior ao que é proposto pelo Conselho da Europa para os magistrados do MP e ao da esmagadora maioria (se não mesmo a totalidade) dos nossos parceiros da UE.  Os procuradores portugueses devem recusar o cumprimento de diretivas, ordens ou instruções ilegais e podem fazê-lo, salvo contadas exceções, em caso de violação da sua consciência jurídica. Na prática as coisas têm-se passado assim : se um superior hierárquico considerar que uma medida de coação judicialmente fixada ou uma sentença proferida não são justas e adequadas (e são estes os casos onde mais frequentemente o problema se suscita) ,dialoga com o titular do processo que denote não querer interpor recurso e apresenta-lhe argumentos para o fazer. Normalmente obtém adesão e a questão fica resolvida. No limitadíssimo número de casos onde tal consenso não é alcançado tem o hierarca que proferir, por escrito, uma ordem com o exato sentido do procedimento a adotar. Perante ele pode o destinatário acabar por aderir ou pretender não lhe dar cumprimento, invocando ilegalidade ou violação da sua consciência jurídica. É então, e só então, que o superior hierárquico pode avocar, isto é, chamar a si a prática do acto ou dela encarregar outro magistrado que perfilhe a sua opinião. Devo esclarecer que nunca, em quarenta anos de serviço, recebi ou tive de emitir uma ordem dessa natureza. O que não significa que não devam existir como instrumento de ultima ratio.

Estávamos nisto quando, a propósito de pormenor semântico introduzido last minute no novo Estatuto do MP, publicado em Agosto último e vigente desde 1 de Janeiro deste ano, houve quem viesse defender a tese de que os poderes hierárquicos em matéria penal passavam a ficar limitados a assuntos genéricos e organizativos e que, em contraponto, se expandia o grau de autonomia decisória de cada magistrado. Em suma: deixariam de poder ser emitidas ordens ou instruções sobre casos concretos.

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Porque não houvesse unanimidade no assunto (coisa frequente e até saudável entre juristas) solicitou-se à Procuradora Geral da República que pedisse parecer ao Conselho Consultivo. Veio então este corpo consultivo, integrado por procuradores, juízes e outros juristas de reconhecido mérito, que goza de patente prestígio no meio jurídico nacional pelo seu apuro científico e pela sua isenção, a concluir essencialmente , por unanimidade, que : (i) nada se tinha modificado em virtude das alterações legais produzidas; (ii) continuavam a poder ser dadas ordens ou instruções sobre aspetos concretos de um processo penal; (iii) sendo essa a única interpretação do Estatuto congruente com o princípio da subordinação hierárquica firmado na Constituição. A Procuradora Geral da República, no uso dos seus poderes estatutários, emitiu diretiva determinando que o parecer se considerasse doutrina obrigatória para os magistrados do MP.

Levantou-se então um torvelinho de contrainformação: que a autonomia do MP estava em crise a partir de agora e que uma longa manus se preparava para manietar a acção do MP na repressão dos poderosos. Como assim se, na economia do parecer homologado e da diretiva à sua luz emitida, tudo permanecerá como dantes no que respeita às relações internas de cariz hierárquico? Por outras palavras: a expansão da autonomia interna é que não logrou vencimento e, em consequência, os poderes de emissão de ordens e instruções concretas em matéria penal continuarão a ser usados com a parcimónia, o tacto, a cordialidade e o respeito devido a opiniões diferentes, que sempre predominaram.

Este poder de intervenção hierárquica, condicionador da autonomia interna e com ela em permanente e sensível concordância prática, funda-se em razões de equilíbrio e de eficácia. Equilíbrio enquanto contrapeso à irrecorribilidade das decisões do MP, ao contrário do que ocorre com as decisões judiciais. Eficácia porque só assim se logra a uniformidade na aplicação do direito que é pressuposto das sociedades democráticas, porque fator da igualdade dos cidadãos perante a lei. Eficácia ainda porque só no quadro de uma organização hierarquizada, funcionando de forma coordenada e não atomística, é possível gerar as sinergias adequadas ao enfrentamento do crime organizado e complexo da nossa contemporaneidade. Foi este quadro de intervenção organizada, em equipa, que o legislador tomou como referência para atribuir ao MP a direção da investigação criminal no Código de Processo Penal de 1987. Se assim não fosse razões não haveria para retirar tais competências aos juízes de instrução criminal.

Claus Roxin, um dos nomes mais reputados da doutrina penal alemã, afirma que “seria contrário à paz jurídica que cada magistrado do MP pudesse, sem controlo, seguir a sua concepção jurídica, conduzindo a uma fragmentação da prática acusatória”. Outro autor (Horst Hund) assevera de modo mais impressivo, que não perfilho, que a total independência dos magistrados do MP conduziria ao “primado dos inexperientes”, por falta de corretivos hierárquicos.

Em tempos de populismo não se demonize a intervenção hierárquica, porque ela propicia um melhor serviço à comunidade. E porque a vivência de quase meio século do MP em democracia não regista desmandos que autorizem qualquer labéu. Além dos Procuradores Gerais da República tem consagração estatutária um considerável leque de magistrados com responsabilidades hierárquicas a diversos níveis, até ao terreno. São, por exigência de lei, magistrados de mérito, mais experientes, usualmente sensatos e com atributos de objetividade, probidade e isenção não inferiores aos dos que estão na base, sob sua dependência. O seu recrutamento e o escrutínio da sua acção são feitos de forma cada vez mais exigente e apurada pelo Conselho Superior do MP. E não há seguramente motivos para considerar que estejam mais expostos ou vulneráveis às vicissitudes sociológicas dos sistemas de contacto do que os mais jovens e menos graduados. São eles que, não há como negá-lo, exercem o acompanhamento dos processos, procuram sensibilizar os colegas sob sua imediata dependência para as soluções mais justas e adequadas e emitem, quando estritamente necessário, as ordens e instruções que julgam pertinentes, em clima de diálogo, abertura e aceitação de opiniões diversas. São eles que intervêm processualmente e não os da cúpula. Não se evoquem papões inexistentes!

Não ignoro que, volvida a turbulência da fase inicial da contestação, a questão que agora se coloca com mais premência, e que a Procuradora Geral da República decidiu submeter a novo parecer do Conselho Consultivo, é de natureza puramente adjetiva: qual o regime de acesso ao registo escrito e, implicitamente, onde deve inserir-se a ordem ou instrução dada em concreto? Considero que um nível adequado de escrutínio e transparência se conseguisse com a sumária identificação da ordem no processo e o seu depósito em expediente ou suporte conservado para consulta, com procedimentos de acesso que salvaguardassem a concordância prática entre os interesses da investigação e os dos demais sujeitos processuais. Contudo, o nível de apaixonada desconfiança que o tema suscitou leva-me a admitir realisticamente que fique consignada em apenso ao processo, como ocorre já com outros incidentes. Para que, enfim, se alcance a paz necessária ao trabalho que a comunidade de nós reclama.