Às vezes chegam boas notícias, mesmo da banda da justiça. É bom saber que não são só galeões carregados de bagatelas que dão corpo à justiça penal, movendo-se lenta e ritualizadamente num mar sem ímpeto, nem são apenas naus carregadas de mastodontes que aguardam inevitável encalhamento nos baixios da prescrição. É bom saber que ainda há quem tenha energia para subir às gáveas, tentando perscrutar melhores caminhos.

Desde há quinze anos que um pequeno grupo de magistrados porfia instalar em Portugal o instrumento que actualmente mais pode contribuir para realizar a velha máxima de que “o crime não compensa”. Falo da recuperação de activos, a última esperança que resta à realização dos anseios comunitários de Justiça quando, por exemplo, se chegar ao ponto de não poder fazer cumprir a pena aplicada a um arguido que com o decurso do tempo se tornou inimputável.

O estabelecimento de regimes eficazes de recuperação de activos através da apreensão e confisco ou perda de bens tem sido uma preocupação constante, quer nos principais instrumentos internacionais produzidos no seio da O.N.U., quer nas mais recentes produções do direito europeu. Poderá mesmo dizer-se que se vai firmando uma ideia de superação da prisão como fulcro da reacção penal em favor de soluções que viabilizem o “asfixiamento económico” do agente do crime, isto é, que facilitem a apreensão das vantagens, produtos e instrumentos da sua actividade criminosa, actual ou pregressa, e a sua perda ou confisco.

Vai-se, em suma, cimentando a ideia que a recuperação de activos serve três objectivos: o de acentuar os intuitos de prevenção geral e especial, através da demonstração de que o crime não rende benefícios; o de evitar o investimento de ganhos ilegais no cometimento de novos crimes, propiciando, pelo contrário, a sua aplicação na indemnização das vítimas e no apetrechamento das instituições de combate ao crime; e o de reduzir os riscos de concorrência desleal no mercado.

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As contrariedades com que se tem confrontado esse grupo de magistrados, que procura cumprir os desígnios das leis de política criminal e as Directivas superiores, têm sido as mesmas de sempre, características de organismos conservadores e resistentes à mudança, sobretudo quando isso implique algum acréscimo de esforço. Qualquer inovação só se entranha depois de muito longamente se estranhar.  Mas não se lhes tem notado desânimo. Depois de terem contribuído decisivamente para o aperfeiçoamento do arsenal legislativo e para a afirmação da sua constitucionalidade, têm elaborado e difundido estudos sobre a matéria, realizado conferências, colóquios e seminários e facultado catálogos de boas práticas, normas de orientação e balcões de apoio técnico. Tudo em prol dos colegas que lidam directamente com os processos e tudo ao alcance de uma boa leitura, quando não mesmo de um simples clique no sistema informático privativo do Ministério Público. Mas a resposta tem sido assimétrica, havendo regiões que continuam como se nada se tivesse passado.

Dando provas de uma resiliência rara entre nós, acaba esse grupo de lançar um livro intitulado “O Confisco não Baseado numa Condenação”. Trata-se de uma compilação de textos de evidente densidade doutrinária que explanam as vantagens da NCBC (Non Conviction Based Confiscation). Este tipo de solução, adoptado já em diversas latitudes, nasce da constatação de que o direito penal, que havia servido para resolver os problemas de criminalidade comum, foi-se progressivamente tornando imprestável quando subiu à cena a déviance das pessoas de elevado estatuto no domínio dos negócios e do exercício do poder. A complexidade das leis, muitas vezes forjadas à luz de Directivas e Regulamentos supra nacionais, a falta de estratégia processual e a frouxidão interpretativa das instâncias formais de controlo e, por outro lado, a acutilância de defesas de enorme competência, acolitadas pela melhor doutrina que o dinheiro pode comprar, tornaram o sistema de justiça penal uma peça inglória no arsenal das respostas possíveis.

Assim, o confisco não baseado numa condenação, realizado num procedimento administrativo ou civil contra a “propriedade contaminada”, com standard probatório civilístico, apresenta claramente a vantagem de não estar cingido aos espartilhos do processo penal, de se contentar com menores exigências de prova, de admitir a inversão do onus probandi e de permitir, portanto, a declaração de perda através de um tipo de procedimento mais ágil, sem o peso garantístico do penal. Essa solução, admitida pela Convenção da ONU contra a Corrupção, por Diretivas da União Europeia, pelo GAFI, pelo G8, pelo Conselho da Europa e pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, coincide com a civil forfeiture do sistema anglo-saxónico e com as leyes de extinción de domínio de diversos países ibero-americanos, todas baseadas numa actio in rem.

A este propósito, não posso calar a surpresa que me causou a obstinação do poder legislativo português no achamento de uma quase impossível tipificação do crime de enriquecimento ilícito ou injustificado que simultaneamente respeitasse o princípio da presunção de inocência e evitasse a armadilha de atribuir ao Ministério Público a prova diabólica de factos negativos. Se o que se pretendia era mais do que uma “lei de etiqueta”, que aliviasse consciências e desse o compromisso de legislar como cumprido, se queríamos ter realmente ao nosso alcance um instrumento ágil de dissuasão de práticas criminosas, especialmente no domínio da corrupção, seria este, o das actio in rem, o das leyes de extinción de domínio, o melhor caminho. O regime agora enxertado na lei 52/2019, construído em moldes de desobediência ao dever de declarar, assenta desmedidamente na acção enérgica e minuciosa (coisa sempre muito difícil entre nós) de uma Entidade que aguarda há anos entrada em funcionamento, além de formular exigências probatórias (sempre tormentosas) da “intenção de ocultar” os elementos patrimoniais e rendimentos não declarados a essa entidade. É assim bem possível que com tudo isso se perca o vigor almejado e pouco reste das virtudes salvíficas do ansiado instrumento.

É, pois, de meridiana evidência que o poder legislativo deveria encarar esta solução como uma via de fortalecimento do Estado de Direito e encetar trabalhos com base nas experiências colhidas noutros sistemas e nos estudos que se oferecem na obra agora publicada sob a coordenação dos meus colegas Conde Correia e Norberto Martins. “Deveria”, disse eu, sabendo de antemão que nunca qualquer centelha de reformismo andou tão arredia como hoje do espírito de quem nos governa…