Na passada quinta-feira, a Igreja universal celebrou a solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, ou do Corpo de Deus, como também se diz no nosso país.

De facto, sendo a Eucaristia o sacramento da presença real, verdadeira e substancial de Jesus Cristo, o qual é, como a fé cristã crê e confessa, verdadeiro Deus e Homem verdadeiro, pode-se dizer, com rigor teológico, que a hóstia consagrada é, realmente, o Corpo de Deus. Claro que a natureza divina não é corpórea, nem se pode dizer que o Pai, ou o Espírito Santo, são materiais, mas sim a natureza humana que assumiu a segunda pessoa da Santíssima Trindade, o Verbo, quando, no seio imaculado e virginal de Maria, foi concebido e gerado, unindo-se para sempre à nossa condição humana. Por isso, a segunda pessoa divina é, para além de Deus verdadeiro, verdadeiro homem, com corpo e alma.

De modo análogo a como se pode dizer, com propriedade, que Maria é Mãe de Deus, porque deu à luz a segunda pessoa da Santíssima Trindade que, enquanto homem, nela foi concebido e gerado, também se pode dizer que a Eucaristia é, verdadeiramente, o Corpo de Deus, segundo a tão expressiva e rica tradição litúrgica do nosso país.

Embora Deus seja Pai, Filho e Espírito Santo, como no domingo anterior a liturgia de Igreja solenemente celebrou, as três pessoas divinas não multiplicam a essência, ou natureza divina, que é uma só, pelo que a confissão da Trindade não implica nenhum politeísmo, nem contradiz a unidade de Deus. Por seu lado, a Eucaristia é Deus enquanto é Jesus Cristo, com o seu corpo, sangue, alma e divindade, pois ao Pai e ao Espírito Santo não está associada nenhuma realidade corpórea (embora o Pai seja representado com figura humana e o Espírito Santo tenha aparecido em forma de pomba).

De modo análogo a como a expressão Corpo de Deus remete, necessária e exclusivamente, para o Verbo encarnado, também a designação Mãe de Deus, embora teologicamente correcta, só respeita aquela pessoa divina que é Jesus Cristo, o qual é perfeito Deus e perfeito homem. A donzela de Nazaré não é mãe da Santíssima Trindade, nem de Deus Pai, nem do Espírito Santo: a sua maternidade se refere apenas e só à segunda pessoa da Trindade, na exacta medida em que encarnou, ou seja, assumiu a nossa natureza humana.

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Talvez o mistério mais claramente enunciado na Sagrada Escritura seja, precisamente, o da Eucaristia. Com efeito, são absolutamente inequívocas as palavras proferidas por Jesus de Nazaré, na última Ceia, quando instituiu este sacramento e deu aos apóstolos, e apenas a eles e aos seus sucessores na Ordem sagrada, o poder de consagrar o pão e o vinho, transformando-os no seu Corpo e Sangue (Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-26; Lc 22, 14-20). Como oportunamente recordou São Paulo VI, na encíclica Mysterium fidei, as palavras da instituição eucarística não podem ser entendidas como uma mera representação simbólica, pois expressam uma nova realidade, não obstante a permanência dos acidentes do pão e do vinho. Por isso, Jesus Cristo não disse que a Eucaristia O simbolizava, significava ou representava, mas que é Ele mesmo e, porque assim o crê desde sempre a Igreja, a Eucaristia é digna de adoração, que seria idolatria se não se tratasse do próprio Deus encarnado.

Não apenas as fórmulas da instituição da Eucaristia são explícitas quanto à alteração produzida, que os teólogos dizem ser um caso único de transubstanciação, como também o extenso discurso eucarístico, pronunciado na sinagoga de Cafarnaum, dissipa qualquer dúvida que pudesse existir sobre a realidade da presença divina no Santíssimo Sacramento (Jo 6, 26-51). Não estranha, portanto, que já então este mistério escandalizasse não poucos dos seguidores do Mestre, que, desde então, deixaram de O seguir, indignados pelo facto de que tinham que O tomar ao jeito de um verdadeiro alimento e de uma verdadeira bebida (Jo 6, 66). Não assim os apóstolos, não porque entendessem melhor a realidade misteriosa desta presença, mas porque acreditando em Jesus, sabiam que tudo Lhe é possível, mesmo o que, não sendo metafisicamente impossível, nem racionalmente absurdo, excede a capacidade de compreensão da limitada razão humana (Jo 6, 67-69).

Os textos evangélicos são mais do que suficientes para crer na realidade do mistério eucarístico, mas o mais antigo testemunho sobre a presença real de Jesus Cristo na Eucaristia é ainda anterior, porque consta na primeira epístola de São Paulo aos coríntios. É significativo que seja Paulo, que não fazia parte do grupo dos doze apóstolos, nem participou na última Ceia, quem confessa que Jesus disse então que o pão e o vinho, sobre os quais proferiu a fórmula ritual da consagração, se transformaram no seu Corpo e Sangue. Por isso, adverte o apóstolo de Tarso, “aquele que comer este pão ou beber o cálice do Senhor indignamente, será culpado do delito cometido contra o Corpo e Sangue do Senhor” (1Cor 11, 27), ou seja, “come e bebe a própria condenação” (1Cor 11, 29). O pecado de comungar indignamente é um sacrilégio que, embora merecedor, segundo São Paulo, da eterna condenação, é, porém, susceptível de remissão, em sede de confissão sacramental.

Duas notas finais. A primeira para fazer notar que, pelo facto de este ano a Páscoa ter sido mais cedo do que é habitual, a solenidade do Corpo de Deus aconteceu ainda no mês de Maio. Esta feliz coincidência reforça o sentido profundamente eucarístico das aparições ocorridas em Fátima, sobretudo a última visita do Anjo aos pastorinhos, a quem não só ensinou uma lindíssima oração “em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido” na Eucaristia, como também lhes administrou aquela que foi a sua primeira Comunhão.

Uma segunda nota para registar a excelente notícia que nos acaba de chegar de Roma: o Papa Francisco aprovou um novo milagre atribuído à intercessão do Beato Carlo Acutis que, assim sendo, poderá ser, em breve, canonizado. Este jovem italiano, entre outras muitas virtudes em que foi exemplar, destacou-se pela sua devoção ao Santíssimo Sacramento, tendo até constituído um ‘museu virtual’ dos principais milagres eucarísticos. Esteve também em Portugal, onde peregrinou a Fátima, porque a devoção eucarística é inseparável do culto a Nossa Senhora: em Carlo Acutis, como em qualquer cristão, as devoções eucarística e mariana são expressões da autenticidade e maturidade da fé.