1. Moçambique está em agonia há três meses – desde as eleições legislativas, presidenciais e provinciais de 9 de Outubro. Este processo não é inesperado, dada a evidente gangrena do regime. Em Portugal foi recebido pela usual distração, na qual coabita o desinteresse pelas “coisas de África” — vistas como “imutáveis” — com o seguidismo aos regimes vigentes, por via de um dito “interesse estratégico” nacional. Mas a continuada repressão – que causou já mais de 250 mortos entre oposicionistas — trouxe uma recente azáfama na imprensa.
Assim, escapo ao atual imediato, recuando em busca de uma visão mais abrangente. Afastada da ideia demasiado “poética” que por cá se tem do país, tão visto como “a Pérola do Índico” — o velho cognome de Lourenço Marques/Maputo que se alastrou ao território nacional –, apenas vítima de cíclicas calamidades naturais. Imagem plácida muito devida às memórias trazidas pelos ex-colonos, imunes que estiveram – ao invés dos seus congéneres no restante ultramar continental – das agruras das guerras coloniais, pois lá circunscritas em áreas recônditas. E também ao grande sucesso atual em Portugal de uma literatura “leve” moçambicana, a qual reproduz estereótipos sobre aquelas populações, suas mundividências e ambições.
2. Figura maior das letras moçambicanas, o romancista João Paulo Borges Coelho vem demonstrando – mas fazendo-o alheado de qualquer militância ideológica subalternizadora da tarefa literária — as complexidades, costuras e cesuras constitutivas do seu país. Mas também das continuidades, nessas também com o passado colonial.
Identifico uma dessas, estruturante do regime atual. De início este recobriu de noções marxistas o velho lema “O Fardo do Homem Branco”, tornando-o no “fardo do homem revolucionário” com o seu afã transformador, “civilizador”, no que de tutela opressiva tinha sobre a população. Ideário herdado pelo subsequente regime “liberal”, dada a manutenção de quadros e modos. Os quais se indiscutiram através de uma “amnésia organizada”, esquecendo o passado comunista como se assim também apagando o legado das táticas dirigistas e rumos ditatoriais.
Outra é a desconfiança face a um rápido crescimento económico, que possa originar desenvolvimentos que ameacem decrescer o controlo estatal sobre a população. Um pouco como a história – talvez apócrifa, mas tão repetida… – do desagrado de Salazar face ao anúncio da descoberta de petróleo em Angola.
Exemplifico esta perenidade, tão relevante é neste processo. António Ferro (1855-1956) e Fernanda de Castro (1900-1994) foram casal influente das mundividências letradas no Estado Novo. Em 1966 Castro publicou “África Raiz”, um generoso poema, eivado de típico primitivismo benfazejo, no qual África surge como dotada da “Presença subterrânea / de lavas e de chamas, / de vulcões em potência, / ressonância, rumores / dos rios interiores, / promessas de esmeraldas, de rubis, / de metais raros…” (11). E a esta imagem de uma “África” natural, prenhe de um ror de riquezas subterrâneas, qual vulcão irruptivo, hipotético desordenador de bons rumos sociais, tanto encontrei no país. Nos lamentos, já “pós-coloniais”, angustiados com a “maldição” dos “recursos naturais”, temendo pressões internacionais e as derivas apropriadoras das elites nacionais. Assim mostrando a descrença nos “recursos humanos” próprios, nas suas instituições. A história deu razão a esses receios, dir-se-á. Mas também demonstrou a descrença local nessa “África”, afinal nada telúrica ou primordial, mas sim a população e seus anseios.
3. Os alheados surpreender-se-ão em 2025 com a força de Venâncio Mondlane e chocar-se-ão com a rispidez da reação estatal. Mas a violência política no país é uma constante. Desde o seu início a Frelimo compôs-se de purgas internas, quais tramas shakespearianas. As quais continuaram após a independência com a morte de vários dos seus antigos dirigentes, tal como de outros oposicionistas. As suas políticas de socialização rural foram brutais. E até à década seguinte dinamizou letais campos de concentração.
E entre 1976-92 grassou a guerra civil, que a Renamo alastrou à maioria do país. Depois alardeou o estatuto de “pais de democracia”, mas a sua metodologia guerreira assentou no terror, convocando a desabrida reação estatal. “Quando dois elefantes lutam quem sofre é o capim”, é o tão apropriado provérbio: a guerra causou, direta e indiretamente, um milhão de mortos e cinco milhões de refugiados, na sua maioria oriundos de meios rurais. Um processo que deixou uma cesura indelével entre as elites partidárias, pouco ou nada favorável à “coabitação” democrática.
4. Por exaurido que o país estivesse, a paz não adveio só por dinâmicas internas, muito dependendo do fim da Guerra Fria e do regime sul-africano. Ainda assim a pacificação social teve sucesso. Muito devido à presidência de Joaquim Chissano (1986-2005), um virtuoso estadista. Soube colher inúmeros apoios internacionais. E regulou a transição para uma economia liberal. Alguns apontam ter sido então o início do regime oligárquico, em conúbio com as transações estrangeiras. Mas se como colónia Moçambique estava desprovido de classe empresarial e de capital próprio, após o período comunista e a guerra, inexistiam indústria, agro-indústria e verdadeira rede comercial. Assim, exigir que a transição para uma economia de mercado seguisse um “manual de bons costumes” seria uma utopia estéril. De facto, no final de XX houve democratização de instituições e desenvolvimento. Coexistindo, é certo, com laivos de criminalização estatal – como exemplificou o assassinato em 1997 de Lima Félix, administrador residente do BCP.
Entretanto o Estado fora surpreendido nas eleições de 1994 com a expressão, quantitativa e territorial, da Renamo, antevista que era como mero movimento “tribalista” sofrendo o ónus do terror. Desde então o sistema eleitoral foi sendo moldado para evitar os ditames do “uma pessoa, um voto” – como agora reconhecem veteranos da Frelimo como Abdul Carimo Issá e Narciso de Matos. E em 1999 a Frelimo foi abalado com a derrota nas presidenciais – e provável nas legislativas —, obrigando a um manuseio in extremis da contagem na província de Nampula. Já antes, nas primeiras autárquicas de 1998, a Renamo se recusara a participar, contestando o processo de recenseamento.
5. A presidência de Armando Guebuza (2005-15) trouxe alterações. Surgiu o alardear de um nacionalismo crispado face ao “ocidente”, qual reclamação de soberania exigindo com o fito de sustentar não só dotações orçamentais diretas na Ajuda Pública do Desenvolvimento como refutando o prévio molde de “condicionalidade política” que orientara a prática “ocidental”. Um viés que traduzia uma menor propensão para a democraticidade interna. E ligado ao veloz crescimento da presença da China e, também, do Brasil, países desprovidos de intenções de dinamização institucional. O símbolo dessa inflexão diplomático-económica será a propositada humilhação do governo português na cerimónia internacional de entrega de Cahora-Bassa (2007), situação impensável sob a presidência anterior.
Os contextos eleitorais alteraram-se. Guebuza reavivara a Frelimo, para isso também contando com reformas administrativas, cooptando setores das “autoridades tradicionais” – e dos sacerdócios —, bem como promoveu a descentralização de recursos, promovendo algumas elites distritais. Para além disso, os insucessos eleitorais da Renamo algo terão desmobilizado seus apoiantes ocasionais. Na fiada de autárquicas o partido obtinha algumas vitórias mas em termos nacionais a Frelimo impunha-se sucessivamente, é certo que com o controlo do sistema eleitoral. Entretanto a Renamo mostrava-se também incapaz de sedimentar as alianças com partidos ou setores da intelectualidade urbana, típico traço de movimentos subordinados a elites militarizadas. Foi nesse eixo que se estabeleceu o MDM, então liderado por Deviz Simango, que se circunscreveu à cidade da Beira.
Poder-se-á dizer que neste período se sedimentou o que Lucas Bussotti intitula “democracia negocial”: as eleições realizam-se, são sufragadas internacionalmente, os resultados são concertados entre as lideranças partidárias e algum tipo de redistribuição de recursos se sucede. É nesse âmbito que se poderá compreender a sublevação da Renamo após 2013, porventura devida à ambição de um maior quinhão no gigantesco desvio de fundos, ditos como destinados à proteção das explorações no Cabo Delgado, um caso que veio a ser conhecido como “dívidas ocultas”. E que, inclusive, conduziu à prisão (nos Estados Unidos, depois de longo cativeiro na África do Sul) do antigo ministro Manuel Chang. Mas este caso é ainda mais significante, dado que a implacável repressão militar da sublevação Renamo levou à reabertura de campos de refugiados no Malawi.
6. A presidência de Filipe Nyusi (2015-2025) foi um consabido descalabro – por demais exemplificado na gestão da guerra no Cabo Delgado, onde foi gritante a inação estatal. Para além de si próprio, Nyusi foi enredado na teia dos “sindicatos” conflituantes na elite do partido, este próprio exausto, e de há muito mergulhado na própria comercialização das suas lideranças intermédias. A apropriação dos fundos internacionais, a rapina de excertos dos “recursos naturais” – entre os quais o vasto litoral, fervilhante de economia criminal índica, a própria “indústria de raptos”, forma de extorsão aos comerciantes de origem asiática, são uma constante. E, com as mortes de Afonso Dhlakama, líder histórico da Renamo, e de Simango, do MDM, foram abandonados os pruridos da referida “democracia negocial” – tal como ficou comprovado com as eleições autárquicas de 2023, com a Frelimo a anunciar uma implausível vitória. Para além disso generalizou-se o assassinato político – desde o constitucionalista Cistac (2015), ao autarca de Nampula Amurane (2017), ao ativista Matavel (2019) – este, simbólico da perda de controlo da província de Gaza, desde sempre feudo da Frelimo.
7. Mondlane está muito só. O partido Podemos, sob o qual concorreu, não é uma “dissidência” da Frelimo, mas sim uma sua emanação – na prática serviria como putativo trampolim político de Samora Machel Júnior. Exilado – e avisadamente, como o comprovam os sucessivos assassinatos —, perderá a possibilidade de um efetivo ombrear e dialogar com o crescente descontentamento da classe média – inclusive dentro da Frelimo. E o controlo dos contestatários, eles próprios também vencíveis pelo cansaço.
Alguns intelectuais clientes do regime – entre os quais alguns dos mais reconhecidos escritores do país — acusam-no de ser de “direita” (como se os pólos “direita” e “esquerda” tivessem algum sentido no país). Nas redes sociais disseminam imagens suas com André Ventura, cirurgicamente obscurecendo que Mondlane fez uma ronda de contactos com políticos portugueses e europeus. Acusam-no de ser “pastor” “evangélico” – não só querer esquecer o seu (deles) apreço por figuras como o pastor político Jesse Jackson, como também apagam o facto de que as figuras religiosas vêm sendo consagradas no país como interlocutores políticos: os presidentes da Comissão Nacional de Eleições são clérigos, escolhidos rotativamente segundo as suas religiões. Um partido islâmico (PIMO) foi figura inicial do regime democrático, autarcas são eleitos por candidaturas religiosas. E, muito mais importante, grassam em vários países africanos políticos e movimentos ancorados nas igrejas evangélicas, uma “revolução conservadora”, muito ligada à constatação de falhanços estatais.
E, mais perversamente ainda, esquecem que alguns dos seus mais próximos – como o assassinado Elvino Dias – se reclama(va)m da “esquerda” marxista. No fundo, um caldeirão ideológico que denota a conjugação de descontentes com a deriva infecunda da velho Frelimo. Autocrático.
8. Que fazer? É óbvio que a situação é insustentável. Nem é crível que o Podemos renegarão a sua entrada na Assembleia da República. Nem Mondlane poderá continuar a discursar de longe por muito mais. Mas também o Estado não poderá continuar apenas a reprimir. E muito menos poderá assumir que o seu atual rumo é benéfico, desenvolvimentista. Sem maximalismos urge negociar. Ceder, mutuamente. Com pressão internacional – do tal malvado “ocidente”, pois para o propalado “sul-sul” só conta o “business as usual”. E, decerto, dos países vizinhos, preocupados com a instabilidade e a ruptura dos fornecimentos. E das congregações religiosas, confederações evangélicas e igrejas cristãs em geral.
Um acordo desiludirá algum povo. Sim. Mas contentará a maioria. E depois que se façam reformas, melhorias. Se houver patriotismo suficiente.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.