As eleições autárquicas em Moçambique da passada semana logo se tornaram um cúmulo de desconchavo. No processo de municipalização do país, 65 dos seus 154 distritos são já municípios – há um quarto de século eram apenas 33. E é nesses órgãos eleitos que tem vigorado a efectiva partilha de poder – a realidade democrática –, dada a gradual conquista de vários conselhos municipais pelos partidos da oposição.

Mas agora, desde o primeiro dia pós-eleitoral se percebeu que o governamental FRELIMO assumiu uma estratégia diferente: a de uma radical manipulação dos resultados para reclamar a vitória absoluta, afastando o opositor RENAMO de qualquer órgão local. Deixando apenas a cidade da Beira para um outro partido oponente.

Este rumo do presidente Nyusi é tão abrasivo que deixou estupefacta – e irada – a sociedade, havendo já vários anúncios de manifestações contestatárias. E, facto significativo, é muito visível a disparidade entre as enormes concentrações de protesto e as tímidas celebrações vitoriosas… Um processo que também causou inéditas críticas internacionais – os EUA acabam de se apartar desta situação, apelando à consideração das reclamações da oposição. E, ao que consta, mal-estar entre algumas das correntes internas do próprio FRELIMO. Tamanho é o desnorte deste eleitoralismo omnívoro que ontem já se anunciava a anulação pelos tribunais locais das eleições em três municípios, menores (Cuamba, Chiúre, Chokwé), e até a exigência de recontagens parciais em pleno Maputo –, deixando transparecer que o escândalo é demasiado até para o próprio funcionalismo, tradicionalmente tão vinculado ao partido do poder.

Parece assim já longínquo o tempo em que as eleições eram sentidas pelo povo como a festa da liberdade. E, nunca esquecer, da paz! Recordo as primeiras eleições multipartidárias, em 1994. A que assisti vivendo numa recôndita aldeia comunal no interior do Cabo Delgado. Houve celebração no dia do anúncio dos resultados nacionais. O director da empresa de fomento agrícola laborando nas imediações mandou vir de Montepuez, a 50 kms, um camião-cisterna com água cristalina, distribuindo-a entre aqueles milhares de habitantes, utentes de meros dois “poços melhorados” e alguns charcos ribeirinhos, cuja imunda água ali causava uma enorme mortalidade, devida à disenteria. E mandou matar um boi, cozinhado e repartido pelos homens relevantes – que o comeram apartados segundo as preferências partidárias… Ainda assim aquela tanta alegria trepidante não era apenas a dos chilreios da criançada chapinhando na água vertida, ou a da barriga reconfortada pela tão rara, até inédita, carne de vaca.

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Mas sim festa pois aquelas eleições, a “democracia”, eram anúncio da liberdade de movimentos, da Paz. Numa população que fora fustigada durante a “luta de libertação nacional”, a nossa “guerra colonial”. Ou a “guerra dos macondes” – como alguns dos velhos chefes macua-meto ainda diziam, mesmo que alguns deles tivessem sido presos e seviciados pelos portugueses – nós bem menos plácidos guerreiros do que tantos continuam a rezingar –, transportados para o Ibo, e até alguns deles, já só recordados, para a então Lourenço Marques. E a razão para tal havia sido sempre a mesma, passavam os guerrilheiros, depois os portugueses, e a população acusada de apoiar o “inimigo”. Na guerra o camponês é o mexilhão do mato, sabe-se bem. E, quantas vezes, também o é na paz.

Viera depois a guerra civil, muito mais violenta, atroz. Começada lá na longínqua Manica – e contando com letais incursões rodesianas – mas logo espalhada durante 16 anos por todas as regiões. Milhões de mortos e refugiados, o país tornado um vasto campo de minas, esse capim mortal. Fome, nudez, desgraça. Como tal “eleições” era então nome de esperança, na paz e desenvolvimento.

Mas o rumo multipartidário não veio a ser linear. Em 1998 foram as primeiras eleições regionais, incidindo em 33 distritos, escolhidos em função do seu perfil urbano. A opção municipalista não fora pacífica, e terá sido influenciada pela escola jurídica portuguesa, muito presente na academia moçambicana e, por essa via, em sectores do poder político. Ao invés, para muitos, mais ligados ao centralismo administrativo, fazia recear os anseios de secessão territorial, devidos aos regionalismos ou mesmo ao sempre temido “tribalismo”. Mas então, e até de modo surpreendente, o RENAMO recusou-se a participar, reclamando a falta de condições democráticas. E também nas seguintes parlamentares e presidenciais de 1999 muita polémica existiu sobre a justeza dos resultados.

Desde essa época em todas as eleições houve reclamações. Contestação sobre os processos de recenseamento, de contagem de votos, de apuramento de resultados, dando sempre origem a azáfama pré e pós-eleitoral, e até a alguma angústia nesses períodos. Mas em todos os casos prevaleceu uma visão positiva sobre os processos. As instâncias nacionais sufragaram práticas e resultados. E as missões internacionais de observação eleitoral, sempre presentes, nunca deixaram de anunciar o “free and fair”, o sacrossanto objectivo eleitoral, ainda que apontando algumas incorrecções. É certo que ao longo dos anos alguns resultados foram dúbios. Mas não todos, pois convém não esquecer que o partido FRELIMO tem uma alargada implantação nacional.

Esta continuada placidez dos Estados congéneres e das Organizações multilaterais face às impurezas eleitorais acontecidas será associável à omnipresente “real politik”, a opção dos poderes instituídos pela preservação de interlocutores fiáveis e conhecidos, algo tão recorrente mundo afora. Mas tem também um outro fundamento, um ideário que bem conheço pois eu próprio o assumi. Trata-se da relativização – a sua real subalternização –, do princípio estruturante da democracia, aquele primado “uma pessoa, um voto”. De facto, reinou a consideração de que “Democracia e Pavia não se fizeram num dia…”. E o partido FRELIMO não só esteve crismado da legitimidade histórica de motor independentista, como se apresentava, na sua pluralidade ideológica e extremo pragmatismo tecnocrático, como fiável agente de “boa governação”, desenvolvimentista. Apesar dos propalados pesares… Sob esse enquadramento tornou-se Moçambique alvo preferencial da Ajuda Pública internacional, principalmente no período do grande estadista que é o ex-presidente Chissano.

Para além de todas as polémicas eleitorais, as autarquias tornaram-se o espaço privilegiado, e inédito no país, de afirmação do pluralismo político do país. Em 1994 as elites urbanas haviam sido – verdadeiramente – surpreendidas com a extensão da implantação do RENAMO, que assim se demonstrara um partido nacional e não apenas um movimento terrorista regional, uns “bandidos armados” como sempre fora dito. Mas ainda mais significativo para a afirmação do carácter plural da política moçambicana, foi a progressiva conquista pela oposição, desde a primeira década de XXI, de importantes municípios em quase todo o país. E, por esse meio, da existência de uma democrática partilha de poderes.

A Beira, a segunda cidade do país, tornou-se bastião autárquico da oposição, catapultado pelo carisma de Daviz Simango – muito colhido da memória de seu pai, Uria Simango, antigo dirigente e dissidente da Frelimo, aprisionado e morto após a independência –, que se afastara do RENAMO criando o seu MDM. E para além de algumas mais pequenas capitais distritais – como as simbólicas Angoche ou Ilha de Moçambique –, outras grandes capitais provinciais foram sendo conquistadas pela oposição, como Quelimane ou Nampula. Nisso se tornando notória a possibilidade da coexistência pacífica de vários partidos no exercício dos poderes fácticos, mesmo no âmbito do complexo arranjo institucional da administração estatal moçambicana, por vezes aparentando alguma redundância de postos. Em suma, os municípios moçambicanos demonstraram-se reais laboratórios, comprovando a possibilidade democrática nacional.

E tudo isso acompanhado pela eclosão periódica de conflitos de âmbito nacional, como o levantamento de cariz militar do RENAMO em 2013, reclamando maior democraticidade eleitoral e também uma equidade redistributiva. Ou o complexíssimo conflito do Cabo Delgado, começado em 2017, e que obrigou à instalação de contingentes militares estrangeiros no país. Nesse sentido, o pluralismo partidário nos municípios surge também como uma verdadeira válvula de segurança para a política nacional. Preciosa.

O caminho para estas eleições autárquicas foi precedido por um aparente enfraquecimento das oposições. Morreram Afonso Dhlakama e Daviz Simango, os carismáticos presidentes do RENAMO e do MDM. Antes fora assassinado Mahamudo Arumane, presidente de Nampula pelo MDM, do qual se dizia estar prestes a fundar um novo partido – assassinato que colheu um sepulcral silêncio dos políticos portugueses, tão loquazes sobre tantos outros casos internacionais. Estes acontecimentos poderão ter deixado antever um menor desempenho eleitoral dos seus partidos

Mas ainda assim esta anunciada vitória absoluta do FRELIMO, reclamando todos os municípios à excepção da Beira, e nisso querendo apagar a presença nacional do RENAMO, é algo verdadeiramente exagerado. Deixando temer uma reacção popular. E uma ilegitimação crescente do regime. Ou seja, tornando as eleições não um factor positivo, até festivo. Mas uma fonte de extremado conflito – que, aliás, já assoma em alguns locais, por imagens patentes nas frenéticas redes sociais.

E isto é descabido em termos sociológicos. E demográficos. É preciso recordar que a esmagadora maioria dos 34 milhões de moçambicanos não viveram o período colonial – ou seja, a retórica legitimadora do FRELIMO convocando o seu papel na independência já pouco colhe. Mas o mais importante é que essa maioria também não viveu o período da guerra civil. E se já há 30 anos, após a terrível guerra fratricida, um terço da população votou no RENAMO, quando a este podia ser atribuído o ónus da guerra de terror, por maioria de razão agora ainda é menos apelativo o discurso invectivador daquele partido por motivos belicistas.

Assim sendo, o mais normal é que uma população, macerada pelo efectivo subdesenvolvimento nacional, vote crescentemente em partidos de oposição, mesmo que sem ser por âncora ideológica. Algo que se estende também a um funcionalismo público, constrangido pelos efeitos das crises económicas e também ele maioritariamente demasiado jovem para legitimar o FRELIMO por razões… históricas. E isso será bem difícil de apreender num partido que sempre se assumiu como Partido-Estado.

Finalmente, julgo ter chegado a época dos congéneres internacionais assumirem, também eles, esta realidade. Por mais méritos históricos – ainda que diferentes sempre sejam as avaliações – que o partido FRELIMO possa reclamar, exige-se considerar a realidade presente. Actualmente nele não vigora nem o legado patriótico de índole marxista, nem o pragmatismo tecnocrático, liberalizador e desenvolvimentista, assumido desde meados de 80s. Nem mesmo o mais ríspido nacionalismo económico, procurando a criação de uma real “burguesia nacional”, ideário (sobre)valorizado desde meados da primeira década deste século.

O partido FRELIMO não sofreu apenas a normal erosão que todos os partidos de poder sofrem ao longe de décadas, mas sim um processo real de degenerescência. Nele coexistirão vários núcleos, porventura alguns deles com esgarçados projectos para o país, só que o que actualmente predomina é apenas a busca da manutenção do poder. Na mera ânsia do “poder pelo poder”.

Este “all in” de Nyusi, na senda de se impor num inédito terceiro mandato, é uma patética demonstração de um poder que se sonha total… E que sempre, a história nos ensina isso, acordará vácuo. Apeado, após estertores violentos, e quantas vezes sanguinolentos. Com mais ou menos custos para o povo. Esse que, como me dizia ontem um amigo, “tem(os) uma relação estóica com os partidos…”, Mas que anseia por mais.

Insisto, está na altura de nós-outros, estrangeiros, também percebermos isto. Não por anseios de “ingerência”. Mas porque “nenhum país é uma ilha”.