O país mais populoso do planeta foi o primeiro a conseguir lançar a sua própria moeda digital. A novidade é que estas moedas são programáveis, permitindo condicionar as transações dos cidadãos. Como estes não têm “chaves-privadas”, o regime controla diretamente o consumidor! É claro que o “grande líder” não olha apenas para a dimensão financeira desta nova realidade.
Outros estreitam o olhar nesta única dimensão. Num relatório da multinacional Goldman Sachs, pode ler-se que “as curas de doenças podem ser más para os negócios no longo prazo” … Este relatório, dirigido a empresas de biotecnologia, coloca a seguinte questão: “curar os pacientes é um modelo de negócios sustentável?”, apontando o exemplo da empresa Gilead Sciences e o seu tratamento da hepatite C que alcança taxas de recuperação de 90 % (curas definitivas). Recentemente, as ações desta multinacional farmacêutica dispararam após vários doentes de Covid-19 terem tido uma rápida recuperado quando lhes foi administrado o medicamento “remdesivir”. Tal subida na bolsa não surpreende, já que a biotecnologia parece oferecer soluções definitivas para novas viroses consideradas inevitáveis por se invadirem habitats selvagens. Ainda no mesmo relatório, refere-se que “o potencial para fornecer curas através de uma só dose é um dos aspetos mais entusiasmantes da terapia genética [e] traz um valor tremendo para os pacientes e a sociedade”. No entanto, depois de admitir um valor que é tremendo do ponto de vista humano, o relatório deixa o contundente alerta de que isso “poderá representar um desafio para os que procuram um fluxo permanente de receitas” …
Esta fria análise, evidencia uma realidade tão implacável quanto assente num modelo absurdo. Na verdade, os modelos de negócio não sustentáveis são, precisamente, os que assentam na lógica financeira patente neste relatório. Será que os negócios têm mesmo de ter “soma nula”? Será que todo o valor humano tem de continuar financeiramente reduzido a uma só dimensão? Apesar de ser esta a lógica dominante nos negócios, o futuro deverá trazer algo bem diferente. A mudança foi anunciada por uma tecnologia, baseada na criptografia, que trouxe consigo uma confiança em rede nunca vista. É nesta tecnologia que se baseiam as novas moedas digitais.
Vai-se percebendo que a tecnologia blockchain viabiliza modelos de negócio verdadeiramente inovadores. No entanto, talvez falte perceber que esta nova tecnologia torna o mundo propício a centralismos nada democráticos, sendo necessárias políticas que salvaguardem a liberdade e a privacidade dos cidadãos. A “confiança distribuída” nasceu descentralizada, como veremos, mas as moedas digitais também têm duas faces e teremos de lidar com o reverso da medalha. Visando enquadrar melhor esta nova realidade, comecemos por observar duas ironias digitais.
O objetivo inicial dos criadores da Internet foi criar um sistema de comunicações que fosse imune a ataques localizados. Conseguiram-no graças a uma característica-chave das redes: mesmo cortando ou interrompendo várias das suas conexões, o circuito entre os nós de uma rede fica assegurado por conexões alternativas, pelo que a rede nunca deixará de funcionar.
A primeira grande ironia do mundo digital é que a Internet, embora tenha sido projetada para defender a autoridade, contra eventuais ações que pudessem subverter a ordem e o poder, veio, ela própria, a tornar-se o instrumento mais subversivo da história da humanidade.
Os inúmeros nós e ligações descentralizadas da Internet, assemelham-se às incontáveis cabeças da mitológica Hidra grega. Este monstro é imortal e invencível, porque, quando é decepada alguma das suas cabeças, logo nascem outras duas. E realmente, apesar do esforço hercúleo de certos países para cortar a rede e acabar com a Internet, ela continua a funcionar!
40 anos depois da criação da Internet, surgiu outra tecnologia revolucionária. Trata-se de uma forma, praticamente infalível, de realizar transações on-line inteiramente seguras, bastando, para tal, recorrer à introdução de um código privado. A posse desta “chave privada” garante, para todo o sempre, a privacidade de cada transação. Fixemos esta informação, que é crucial. A tecnologia blockchain é ainda mais disruptiva do que a própria Internet, pois ela veio dotar esta rede global de uma capacidade que, muito provavelmente, irá alterar a ordem mundial.
Bafejada com um novo “cripto-poder”, a monstruosa Hidra passara a poder acertar sozinha as contas de todas as transações processadas nas suas intermináveis cabeças… Believe it or not! A confiança nas transações deixava de requerer intermediação humana. Nem familiares, nem amigos, nem bancos, nem sequer o estado-nação … Para confiar a 100% numa transação, bastava agora, apenas e só, depositar toda a confiança numa chave privada e na matemática! Mergulhados numa amarga crise financeira (2009), isto até nem parecia ser uma má notícia …
Segundo o seu próprio criador, “pai incógnito” do Bitcoin, o intuito de tal inovação tecnológica seria libertar as pessoas dos ditames financeiros que estiveram na origem da crise económica de então, a qual prejudicou muitas pessoas, a nível mundial, como todos nós bem recordamos. Muitos desconfiaram imediatamente desta nova “moeda digital”, transacionada na Internet sem intervenção de bancos ou de quaisquer seres humanos, enquanto outros consideraram-na uma tentativa justificável de evitar a repetição das tropelias financeiras que originaram essa crise.
Numa segunda grande ironia, talvez ainda maior do que a primeira, a invencível “Hidra Digital” está novamente a surpreender quem inadvertidamente lhe aumentou o poder. A primeira ironia da Internet fora uma não planeada descentralização da sociedade, mas, desta vez, a ironia consiste no oposto: uma centralização do poder que se revela perigosamente fácil de planear…
Está novamente a sair o tiro pela culatra àqueles que criaram uma tecnologia revolucionária, pois nunca foi tão fácil privar os cidadãos da propriedade dos seus dados pessoais. Informação significa poder e quem tiver toda a informação terá todo o poder. Com as moedas digitais, se a tutela informática das transações for centralizada, podemos todos dizer adeus à privacidade… No século XXI, a nova “Hidra Digital” não sairá derrotada por Hércules, podendo sim, vir a ser amestrada por regimes totalitários e/ou interesses corporativos, tornando-se no feroz animal de guarda de ditadores e/ou vorazes CEOs seduzidos pela lógica do poder e do lucro pessoal.
É óbvio que precisamos de um mercado verdadeiramente livre, mas também precisamos de um tipo de dinheiro que não reduza todo o valor à dimensão revelada no relatório da Sachs. Ora, as novas moedas digitais representam uma solução multidimensional para este problema, na medida em que podem ser programadas informaticamente para alinhar as proposições de valor financeiro com as de valor económico. No entanto, para que tal programação seja efetuada, a bem do desenvolvimento humano, o mérito das várias moedas digitais deve ser ajuizado de forma aberta e descentralizada, em livre concorrência no mercado. Deste modo, as moedas digitais servirão mais os interesses comunitários e menos os interesses do costume.
Para perceber a nova realidade económico-financeira (pós-blockchain), entendamos que as moedas digitais integram mais recursos do que os necessários ao funcionamento característico do dinheiro. Podemos pensar nelas como tokens ou ativos digitais. Para além de servirem como moeda de troca, elas podem ter uma dimensão utilitária correspondente às expetativas dos membros das comunidades a que se destinam. Por outras palavras, as moedas digitais podem representar benefícios comunitários, até aqui financeiramente inalcançáveis, permitindo quantificar externalidades positivas (e.g. reciclagem) e negativas (e.g. poluição), por forma a integrar o respetivo valor nas próprias transações e, assim, contribuir para a sustentabilidade dos ecossistemas comunitários. Para tal, estes tokens digitais serão programados como um sistema de incentivos e recompensas, encorajando certos comportamentos e desencorajando outros. Pelas leis do mercado, orientarão a ação coletiva dos seus proprietários e medirão o valor criado na comunidade. É importante não confundir “ação coletiva” com “coletivismo”, percebendo que os tokens digitais, tendo utilidades específicas, funcionam como incentivos económicos individuais programados na ótica comunitária. Assim, cada indivíduo irá perseguir os seus próprios interesses, visando obter lucro pessoal, ainda que transacionando tokens digitais cujo valor estará sempre indexado ao desenvolvimento humano e ao sucesso coletivo.
A “criptoeconomia” traz consigo uma nova realidade, ainda mal compreendida. A maioria dos investidores, que vem ocupando o “criptoespaço”, parece considerar que as aplicações mais desafiantes da tecnologia blockchain consistem em tokens básicos (e.g. Bitcoin) que funcionam sobretudo como reserva de valor. Tais indivíduos e empresas poderão não estar interessados nos destinos comunitários (infelizmente grassa o instinto predador e especulativo), mas, outros indivíduos, enraizados em determinadas comunidades e com interesses convergentes, serão incentivados a criar “economias circulares”, alinhando interesses individuais e coletivos.
Precisamos da liberdade política e económica necessária para que as futuras moedas digitais possam concorrer livre e abertamente no mercado. Só elas podem incentivar a criatividade e catalisar a inovação. Este novo dinheiro irá ser bom, mas outro dinheiro mau chegou primeiro…