1. «Idosos que acabam por ser um fardo para a família, um encargo cada vez maior para a sociedade.» Assim termina uma reportagem sobre idosos abandonados nos hospitais. Acabo de a ver no Telejornal da RTP1.
É dia 7 de Maio de 2018, oito e meia da noite.
2. Nos últimos meses, a pressão para a eutanásia encharcou o quotidiano. Chama-nos à ideia do fim, abeira-nos da morte. É estranho: não é a morte a chegar-se a nós (como é costume), somos nós a ser chegados a ela.
Traz duas ideias dolorosas: a morte e o sofrimento. Um tem remédio: o sofrimento tem remédio. Nem sempre total, nem sempre permanente, nem sempre definitivo, mas sempre algum remédio: alívio, conforto, amparo, abraço, socorro. Outra não tem. A morte não tem remédio de qualquer espécie. Não tem recuo, nem regresso. Já foi. A morte é irremediável.
Os defensores da eutanásia querem usar a morte como remédio para o sofrimento. Parece humor negro: usar o irremediável como remédio.
Esta escolha política – absurda – provoca uma longa série de problemas: éticos, jurídicos, médicos, sociais, humanos. É sem dúvida por terem consciência disso que recorrem a um invulgar arsenal de lugares-comuns e de eufemismos. É a necessidade de adoçar a brutalidade, a fim de procurar legitimá-la.
3. O que se passou comigo, creio passar-se com todos: conhecemos a morte quando ela chega aos que nos são mais próximos. No meu caso, foi com os meus avós.
A minha avó paterna morreu quando eu tinha nove anos. Era muito divertida e brincalhona. Nos últimos anos, lembro-a sempre numa cadeira de rodas, tolhida pelo reumático. Nunca perdeu a alegria. A certa altura, piorou. Caiu à cama. Morreu no seu quarto ao fim de alguns dias. Não a vi no seu leito, despedi-me dela na capela mortuária. Foi a primeira morte da minha vida.
O meu avô paterno morreu poucos anos depois, nos meus treze anos. Foi uma pneumonia. Veio para nossa casa, acabaria hospitalizado. Sucumbiria a uma série de complicações que se acumularam. Vi-o algumas vezes na cama do hospital. Mas a memória mais forte que me ficou foram, nos últimos dias, longos conciliábulos no corredor. Vinha um médico, depois outro, chamavam mais um, faziam sinal ao meu pai, que chamava a minha mãe; e ali ficavam, rostos carregados, alguns minutos a ponderar, por vezes largos minutos, longe da saleta de espera de onde eu olhava. Na minha cabeça, pretendendo adivinhar, eram conversas de vida ou de morte, conversas dos momentos do fim.
O meu avô materno morreu também em hospital, nos meus dezasseis anos. Um cancro, que seguiu o curso natural para a espécie de tumor e a terapia da época. Operado, ficou bem. Não muito tempo depois, o quadro agravou-se. Morreu no hospital onde fora internado.
A minha avó materna morreu sozinha em casa, à noite, durante o sono, muito mais idosa que todos os outros, quando eu tinha já quase trinta anos.
Dos meus avós, três morreram, portanto, com morte assistida, uma expressão de que muito – e mal – se abusa a propósito da eutanásia. A minha primeira avó a falecer, que morreu na sua própria cama, em casa, rodeada pela família, pelo médico assistente (nosso grande amigo) e pelo especialista, foi continuamente assistida na sua morte. Os meus dois avôs morreram ambos com cuidada assistência hospitalar e assistência familiar também.
Curiosamente, a minha avó octogenária foi a única que não teve morte assistida, mas aquela que terá tido a boa morte, uma morte melhor do que meus outros avós: durante o sono, faleceu de um apagamento do coração. Estava serena. Estava bonita. Ouvi dizer: “morreu como um passarinho”, a frase popular da boa morte.
4. A eutanásia não é morte assistida. Morte assistida foi a dos meus avós que a morte não surpreendeu de repente. É a morte de todos os que morrem em meio hospitalar, no próprio lar ou em lares sociais, rodeados de cuidados médicos, de família, de amigos, de outros cuidadores. Os cuidados paliativos integram a morte assistida, embora não sejam só isto e a assistência na morte vá para além deles.
A eutanásia, tal como a ajuda ao suicídio, é morte provocada. Os seus defensores têm que o assumir. Têm de falar verdade. Querem provocar a morte, não assistir a morte. Os meus avós não os quereriam, nem por perto. A lei não pode mentir. Não podem tratar a questão em clima de ludíbrio. Não pode entrar-se em prestidigitação política. Esta é das mais sérias, senão a mais séria, de todas as questões do direito: pode ou não pode acabar-se com a vida de outrem?
A morte assistida não precisa de ser legalizada. Isso é uma aldrabice que puseram a rolar. Morte assistida já existe. Sempre existiu. Está bem. Deve ser cada vez de melhor qualidade, mais extensa nos cuidados médicos para toda a gente, incluindo os devidos cuidados familiares, pessoais, religiosos.
Morte provocada é diferente. É proibida e deve ser proibida. Diz a Constituição: “a vida humana é inviolável”. Nem é preciso saber muito de Direito, basta conhecer um pouco de Português. “Inviolável” é inviolável, não é violável. A frase não tem dias. O prefixo “in” está lá, não é um pisca-pisca intermitente, que ora sim, ora não. É sempre. Sempre inviolável, nunca violável.
5. Este processo político que foi desencadeado tem muito de desastroso. Iremos ver. À esquerda, à direita, na sociedade, no país. Está a fazer muito mal à democracia.
Por um lado, não arranca de qualquer mandato democrático. Lidando com o mais fundamental dos direitos humanos, não foi precedido de propostas que pudessem considerar-se minimamente sufragadas. Trata-se do desenvolvimento de pura maquinação. Por outro lado, ignora olimpicamente a Constituição, como se não estivesse lá. Surpreende como é que o primeiro-ministro, líder do partido do governo, e o Presidente da Assembleia da República consentem e participam. Surpreende como é que o líder da oposição faz o mesmo e não levanta a voz. A Constituição não é de ordem pública? Já não é valor jurídico-político fundamental?
Nem questiono as convicções que tenham quanto à questão de fundo. A liberdade de pensamento é direito de todos. Questiono que, sendo líderes e responsáveis institucionais, não atendam à flagrante ilegitimidade política, inclusive constitucional, do processo que foi precipitado. Choca que nem vacilem perante isto, que nada questionem, nem a si se questionem. É o que pode provocar fractura política.
Normas como “a vida humana é inviolável” não são apenas um direito, mas uma garantia. Faz parte do conjunto clássico dito dos “direitos, liberdades e garantias” e assume, aqui, um valor garantístico superlativo. Na construção do Estado democrático de direito, a Constituição é o acto constitutivo por que os governados, através dos seus eleitos (os constituintes), conformam o Estado e limitam todos os poderes dos governantes. Nessa conformação, entram garantias, com um valor jurídico-político sagrado: diante delas, o Estado nada pode fazer contra e tudo tem de fazer a favor. São garantias. Ai de quem as quebrar.
Os defensores da eutanásia, confrontados com a experiência deslizante de outros países, como Bélgica e Holanda, declamam que a lei a aprovar nunca iria por aí e seria unicamente para os casos e nas circunstâncias agora enunciados. Mas como acreditar nisso? Nem se dão ao trabalho de explicar como iriam garantir que o quadro não resvalaria como aconteceu nos países que destrancaram a porta e foram por aí. Mais: se não lêem a Constituição, nem a querem cumprir, como se ficariam pela primeira lei? Uma vez quebrada a garantia, nada sobraria para garantir. O descarrilamento ficaria entregue ao arbítrio do momento. Exactamente como querem agora.
Se a solene proclamação constitucional “a vida humana é inviolável” não servir para nada, de que serviria a penosa burocracia da morte de que os projectos de lei estão recheados?
6. É sintomático que as últimas semanas fossem marcadas por intolerância e pela censura. Intolerância houve sempre, anti-religiosa. De princípio, escondida e disfarçada, mas sempre presente contra tudo o que cheire a Deus. Afloraram amiudadas vezes os dichotes contra o que se deleitam em estigmatizar como “ICAR”, alvo predilecto dos ódios jacobinos. É a altiva manifestação do menosprezo. Oxalá não queiram proibir a assistência religiosa aos moribundos.
Custa entender tanta insensibilidade ou ignorância (ou ambas) a respeito justamente da morte, que é a questão a partir da qual arranca muito do espírito religioso desde o princípio da Humanidade. E também custa entender qual é a embirração específica nesta questão.
Na linha judaico-cristã, conheço o mandamento “Não matarás” dado a Moisés. E compreendo que Deus o fizesse. Mas não preciso de Deus ou deste Seu mandamento para o ter e observar. Há coisas em que preciso de Deus e em que sem Ele, nada. Mas não preciso d’Ele para saber que “Não matarás” é o que está certo. É igual noutras culturas.
A questão que o asco antirreligioso deste debate nos coloca é um problema muito sério. Se consideram que o “Não matarás” do Sinai é o obstáculo a abater aos seus propósitos legislativos, isso significa que estão a dizer-nos que, apartado Deus e tudo o que alguma vez disse, a República laica, a República laicista não encontra qualquer fundamento filosófico próprio para afirmar e proteger a vida dos cidadãos como valor supremo e absoluto. Isso seria um problema gravíssimo para a República. Para os cidadãos, pior ainda.
É verdade que receio isso, embora o ache ridículo. Mas uma coisa é o meu receio, outra é que me confirmem que, na verdade, pensam assim e é isto que querem: fora Deus (que tanto hostilizam), esta República não encontra e não quer qualquer fundamento filosófico próprio capaz de afirmar e proteger a vida dos cidadãos como valor supremo e absoluto.
7. Esta intolerância, sempre latente, prolongou-se em censura. A posição ecuménica em união de oito confissões religiosas, mostrada em 16 de Maio, foi reportada pela Lusa, mas ignorada em quase todo o lado, em contraste com a importância e invulgaridade do acontecimento. Houve censura a silenciar, a 23 de Abril, a Conferência “Eutanásia e Cultura do Cuidado”, na Universidade Católica, anfiteatro cheio, onde se pôde ouvir, com pormenor e objectiva narração, o quadro terrível em que a Holanda decaiu. Foi pela voz autorizada e documentada do Prof. Theo Boer, que havia sido um dos iniciadores da legislação. A censura não quis que se conhecesse como é mesmo a “rampa deslizante”. Já na véspera, a RTP1 dera, no Telejornal principal, uma peça completamente enviesada sobre a eutanásia na Bélgica, falseando a realidade e fugindo ao contraditório. Assim como, no princípio de Maio, a censura calou em Portugal a notícia de que o parlamento finlandês chumbou, por larga maioria, iniciar um processo legislativo nesta matéria.
Alguns acusarão: “é a esquerda”. Não creio que seja matéria de esquerda/direita. Há pessoas à esquerda que se mostram fiéis ao direito à vida. Mas infelizmente há hoje uma maioria na esquerda a mostrar-se contra ele, fingindo não entender o seu valor. À direita, o mesmo se passa: há os que porfiam pelo valor estruturante da vida e da pessoa humana, assim como, infelizmente, há seguidores de outras correntes que, à direita, sempre menorizaram e relativizaram o direito à vida. A afirmação de Rui Rio de que “é um imperativo do Estado a despenalização da eutanásia” é, infelizmente, uma manifestação de pertença a essa corrente na direita.
8. Estes projectos de lei representam profundíssima ruptura moral. Significam passarmos de uma ordem jurídica em que a vida humana é valor fundacional, para outra em que o não é: a vida humana passaria a ser um bem disponível. Tudo seria diferente a seguir. A ordem social nunca mais seria a mesma, onde o Estado ministre a morte nos seus hospitais ou onde clínicas de morte se organizem como negócio legal.
Não é um passo avançado. É recuo ético muito retrógrado. Admito que o mundo possa mudar de mentalidade. Por vezes, há assim umas ventanias. Mas, neste caso, gostava que fôssemos dos últimos. Portugal gaba-se de ser o primeiro a abolir a pena de morte; fica-lhe bem reservar-se ser talvez o último a retirar a inviolabilidade da vida do elenco das garantias fundamentais.
Porém, o quadro não é esse. Querem colocar-nos no pelotão da frente do desastre. Há no mundo 197 países; apenas em seis se admite a eutanásia ou o suicídio assistido. Pretendem que troquemos a companhia de 190 países, para nos juntarmos à duvidosa parceria da escassa meia dúzia que já estão na rampa deslizante. Ficaríamos, aqui, pior do que a China, ou que a Venezuela, ou a Bielorússia, ou a Líbia, ou a Arábia Saudita. Não é uma perspectiva grandiosa.
9. Não consigo entender a precipitação desta ruptura ética. Há, é certo, momentos e questões de dúvida. Mas é perante a dúvida que as certezas mais fazem falta, sobretudo quanto a valores fundamentais: “a vida humana é inviolável”. Não vamos por aí. Não agimos para matar.
A questão não é acompanhar e socorrer o desespero. É preciso socorrer. O problema é, com alavanca neste desespero, investir alguém no poder de matar, de tirar a vida. É este poder que não pode ser. É este poder que ninguém pode ter. Nem podemos admitir que esse poder fosse investido nos médicos, cujo dever de serviço é exactamente o oposto.
Uma vez franqueada esta barreira ética, o declive nunca mais pára. Começa pela estratégia da fresta: como noutras matérias, os promotores seguem a táctica de eleger um caso muito limitado, especialmente cruciante, para abalar a opinião e confundir os espíritos, procurando abrir uma brecha no edifício que atacam. Confundem o plano do legislador e o do julgador, ignorando que este tem remédios e respostas que aquele não tem: o juiz é concreto e casuístico; a lei é geral e abstracta.
Em todos os desafios, fixada a lei certa, com os valores justos, não há que recear os julgadores. Nas conversas de vida e de morte, que imaginei à distância, pela primeira vez, aos treze anos, nos corredores do hospital onde morria o meu avô, deposito muito mais confiança no saber, na deontologia e na competência de médicos e enfermeiros e na dedicação da família, do que em legisladores inflamados pela política ou em fóruns de opinião pública. Esses momentos, intensamente pessoais, muitas vezes angustiantes, sempre dolorosos, não podem ser transformados em pornografia política ou mediática.
A derrapagem, a seguir à primeira lei, é a sequência furtiva da estratégia da fresta: uma vez aberta a primeira brecha no edifício, demolida a garantia constitucional, quebrado o tabu de não se poder matar, quebrado também o outro tabu de os médicos não matarem os seus doentes, os mesmos promotores da eutanásia avançarão, poucos anos depois, com o resto do pacote. A Bélgica e a Holanda mostram-no bem. Mas não é só isso, nem são só esses.
10. A quebra da garantia do valor da vida produz, de imediato, na opinião pública um efeito de relaxe. E os mesmos ou outros irrompem pela nova ordem moral: afinal, é possível matar. Há matar que não está mal, há matar que até está “bem”. E restaram outros conceitos usados levianamente na primeira luta que favorecem essa contínua ampliação. Ficam como ameaça a pairar sobre todos.
Um é o conceito de morte digna, que colam à eutanásia e ao suicídio assistido. É uma afirmação profundamente irritante de soberba e arrogância raras. Então, os eutanasiados e os suicidas têm dignidade e os outros não? A sua morte é digna e a dos outros não? Os meus quatro avós morreram indignamente, incluindo a minha avó que morreu uma morte santa, durante o sono, na sua cama, sem assistência? Os meus pais tiveram morte indigna e o meu irmão também? Onde lhes falhou a dignidade? Quem a tirou?
A palavra faz caminho social. E a sociedade, desvinculada do direito à vida – não esqueçamos que cada direito de cada um é uma obrigação para os outros –, essa sociedade cada vez mais egoísta, travestindo-se de generosa e filantrópica, entra de apreciar as formas dignas e as formas indignas de morrer. Pouco depois, entra de apreciar também – grau superior – formas dignas e indignas de viver.
Não é necessário que comecem logo a fazer-se leis para precipitar dignas as mortes que, de outro modo, seriam indignas ou para abreviar pela morte – digna, certamente – as vidas avaliadas como indignas. Há uma asfixiante pressão social que se gera, a fazer sentir como fardo pesado determinadas vidas ou as mortes que nunca mais chegam.
Acautelem-se os velhos, os doentes e os deficientes. Acautelem-se os incapazes de algo, os sós ou os apenas cansados. Cuidem-se, porque deles não será o tempo.
«Idosos que acabam por ser um fardo para a família, um encargo cada vez maior para a sociedade.» Assim termina uma reportagem sobre idosos abandonados nos hospitais. Acabo de a ver no Telejornal da RTP1. Foi em 7 de Maio de 2018, oito e meia da noite.
Morte assistida – com certeza. Cuidemo-la sempre melhor. Morte provocada – nem pensar. Importa cumprir as garantias. O imperativo do Estado é proteger a vida e respeitar a Constituição.