Há várias ilações curiosas a retirar do discurso que o Presidente reeleito proferiu na noite da sua reeleição – e que ele próprio parece convidar a descobrir –, mas algumas delas desajustam-se da atitude que adoptou nessa noite. Uma dissonância – alguns diriam uma inconsequência –, que não deixa de ser a revelação da suavidade que caracteriza a sua intervenção política como Presidente (ou, até, de uma verdade mais funda: ninguém deixa de ser aquilo que é).

A atitude

Por mais estranho que isso possa parecer, houve televisões que acharam relevante dar conta das deambulações do carro pessoal do Presidente eleito a caminho da Faculdade de Direito de Lisboa (!). Só por isso soubemos que andou às voltas, a fazer tempo para entrar em cena. O que é estranho: nessa noite, mais ainda do que nas outras, ele era pleno senhor do seu tempo. Não precisava de esperar por ninguém, muito menos pelo termo da mensagem da primeira da meia dúzia de candidaturas que, no conjunto, somaram menos 900 mil votos do que a sua – e que sairia de antena logo que ele saísse do carro. Mas o Presidente eleito é mesmo assim: cordial e atencioso com os outros, mesmo quando era aos outros que competia serem cordiais e atenciosos com ele. Um caso raríssimo nos protagonistas da nossa alta política.

O discurso

Ao invés, o discurso – que retomou muito deliberadamente o simbolismo pombalino de “enterrar os mortos e cuidar dos vivos” (“Até porque a melhor homenagem que podemos prestar aos mortos que lembrei no começo destas palavras é cuidar dos vivos e com eles recriar Portugal.”) – assentou na afirmação de uma prioridade absoluta (“a principal resposta dada por esta eleição é uma e uma só: tudo começa no combate à pandemia (…) sendo tudo urgente (…), o mais urgente do urgente chama-se agora combate à pandemia”). O que, sendo uma pura proclamação, se compreenderia mal (e não teria qualquer sentido) se já tivesse sido definida por quem de direito: o Governo – que continua a fazer o que faz melhor: andar a reboque das circunstâncias (nem de propósito, no dia seguinte o Ministério da Saúde divulgou ter pedido à DGS “informação sobre revisão de medidas face a novas variantes”).

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Claramente, o Presidente eleito quis dizer ao Governo para onde ele deve ir – mesmo, ou sobretudo, por bem saber que não é (não era) para aí que o Governo quer (queria) ir.

O facto político

Onde o discurso deixa de ser um recado ao Governo quanto ao que há a fazer, torna-se num recado ao Governo sobre o sentido desse recado: ao sublinhar o reforço da sua legitimidade (“O mandato nas condições em que foi conferido (…) com uma significativa subida de percentagem e de voto absoluto relativamente há cinco anos, obriga o Presidente reeleito a reter duas mensagens muito claras”, sendo que a segunda, relativa a alterações procedimentais no voto, é de somenos face à primeira: “Ter a noção de que os portugueses ao reforçarem o seu voto querem mais e melhor (…) Entendi esse sinal e dele retirarei as devidas ilações.”).

Simbolicamente, o Presidente estava a invocar – sobretudo perante o Primeiro-Ministro, não se duvida – o estatuto pombalino de que pretende revestir a sua intervenção: ele revê-se (ou pelo menos quereria que António Costa o revisse) não apenas na magnitude da tarefa, mas no papel implacável de quem a executou.

O problema é que não é Pombal quem quer – e Pombal não andaria às voltas de carruagem antes de chegar ao Paço, só para não embaraçar um rival.

Muito menos um rival derrotado.