Não posso fingir que tudo está bem, não posso compactuar com o discurso político da alegria, alegria, aqui estamos nós cantando e rindo em pleno surto de CoVID-19. Manter o caminho traçado não é o correto. O caminho estava adaptado a uma situação previsível de poucos casos no país, eventualmente importados da China. A situação mudou rapidamente. A infecção entrou na Europa e apanhou desprevenida a Itália. Em França, na Alemanha, na Espanha os números escalam todos os dias. Temos de nos adaptar muito rapidamente a este novo paradigma sob pena de não conseguirmos controlar o surto em Portugal e nos tornarmos a 2ª Itália.
Porque motivo não foi já adaptado o procedimento da DGS relativo à ligação epidemiológica de caso suspeito? Continua a ser referido o Japão, quando este país tem menos casos que a França, com a qual temos seguramente maior proximidade (dados da OMS – 349 no Japão versus 420 em França dia 6-03-2019)? Porque motivo uma pessoa que tem febre e sintomas respiratórios e que fez uma viagem ao Japão nos últimos 14 dias é considerado um caso suspeito validado pela DGS e acionados os mecanismos em vigor e um mesmo doente regressado de França é excluído do circuito, sendo descartado como caso não validado? Não compreendo a lógica, mas se calhar sou eu que sou esquisita, sou eu que, sendo Infecciologista há mais de 20 anos, não domino a ciência…
Também não domino bem a temática dos testes estarem restritos. Novamente devo ser eu que sou esquisita pois é absolutamente normal que um médico quando quer prescrever um teste diagnóstico tenha de ligar para uma linha de apoio telefónico e fale com um médico de saúde publica que irá ou não validar a opção do clínico. Afinal é apenas um médico que sabe ver doentes e não domina a complexidade do CoVID-19…
Devo ser eu que sou extraterrestre e que acho que o financiamento deva ser canalizado para os hospitais que sabem o que fazer, que conhecem os seus recursos, que podem implementar estratégias adequadas à sua população ao invés de se criarem centrais telefónicas gigantes, que seguem apenas um algoritmo sem sequer terem visto um doente.
Seria importante que os nossos políticos lessem jornais internacionais, como o “Le Monde”, por exemplo. Assim saberiam que um hospital em Creil, na França tem o seu serviço de urgência encerrado durante 14 dias e só reabrirá no dia 11 de Março. O motivo? esteve internado na urgência um doente durante 6 dias com uma pneumonia, que posteriormente se revelou ser devida ao novo coronavírus. Foi o primeiro falecido com naturalidade francesa. Era um professor, de 60 anos, que não tinha qualquer ligação epidemiológica com os países ditos de risco. O diagnóstico só se fez após ser ventilado e transportado para um Hospital de Paris, onde o teste estava disponível. Ficaram de quarentena todos os profissionais que tinham contactado com este doente (mais de 30 enfermeiros, 15 médicos, auxiliares, entre outros). O Serviço de Urgência encerrou por falta de pessoal. O mesmo cenário também já aconteceu em Itália e aparentemente estamos impávidos e serenos à espera que se repita em Portugal.
A OMS alterou a definição de caso suspeito no dia 27 de Fevereiro e incluiu a possibilidade de se testar casos de pneumonia sem outra etiologia detetada e sem qualquer ligação epidemiológica a uma área de risco. Até ao momento não há, em Portugal, qualquer diretiva neste sentido. Nem todos os médicos têm de ser especialistas em Doenças Infecciosas (somos menos de 150 no país) e de estar a par das diferentes orientações da OMS e do Centro Europeu da Denças Infecciosas (ECDC) mas todos os médicos têm de confiar nas orientações da DGS e estas não estão, seguramente, em linha com as internacionais.
Também será importante referir que as 2000 camas que se divulgam estarem preparadas para receber estes doentes, na realidade não existem. Foi-nos pedido (e eu respondi a este inquérito) quantas camas existiam em cada um dos nossos hospitais em quartos individuais. Nunca nos foi perguntado quantas camas estavam vagas. No seu conjunto, os hospitais em Portugal terão essas camas sim, mas ocupadas com outros doentes. Não estão vagas, à espera dos doentes com CoVID-19. A não ser que se pretenda uma ocupação dupla na mesma cama, podemos esquecer a capacidade das 2000 camas no país.
Sejamos claros e diretos, se ainda há alguma coisa a fazer para travar o curso deste vírus em Portugal, o momento é agora, por favor, mudem de rumo!