Pedro Adão e Silva é como o Altíssimo: tem a capacidade divina de estar em todo o lado. Até 2022, foi comentador na televisão, na rádio e nos jornais, emitindo com bocejante regularidade as suas impecáveis opiniões sobre política, sobre futebol, sobre música e, haja paciência, sobre surf. Entre 2022 e 2024, mudou-se para o Conselho de Ministros onde tutelou, como não poderia deixar de ser, a pasta da Cultura. E, agora que o governo mudou, regressou, como um filho pródigo, ao comentariado.

Estas idas e vindas não têm rigorosamente nenhum problema — afinal, todos temos de ganhar a vida de alguma forma. Além disso, há uma inegável vantagem neste percurso: como Pedro Adão e Silva passou a escrever vários dias por semana num jornal, nós ficámos agora a perceber o que estava na cabeça de um dos ministros mais influentes do governo de António Costa.

Na sua coluna de estreia no Público, Pedro Adão e Silva revelou à Nação que o pedido de demissão de António Costa foi “um golpe de Estado perpetrado por meios não violentos”. Se bem percebi, no lugar de Otelo, de Salgueiro Maia e do general Spínola, tivemos agora Lucília Gago e um grupo obscuro de procuradores temivelmente armados com canetas e papel. É bom saber, para percebermos com o que estamos a lidar, que, quando o núcleo duro de António Costa se sentou para discutir a queda do governo, pelo menos um ministro acreditou mesmo que estava em curso um golpe de Estado. Atenção: não é uma metáfora, não é uma hipérbole, não é uma prosopopeia. Realmente, o ministro Pedro Adão e Silva defendeu, naqueles dias e até hoje, que foi um golpe de Estado a sério que levou ao pedido de demissão do então primeiro-ministro.

Dos cinco artigos de opinião que Pedro Adão e Silva escreveu nesta nova vida, três foram sobre o Ministério Público, o que demonstra excesso de preocupação ou escassez de assunto. E um deles é especialmente instrutivo. Logo depois da entrevista de Lucília Gago à RTP, Pedro Adão e Silva apressou-se a escrever o seguinte: “Se dúvidas existissem, dissiparam-se: estamos perante uma instituição que, enquanto se considera imbuída de uma missão salvífica, corrói os alicerces da nossa democracia. E, pelo caminho, de uma sociedade decente.”

Esperem aí: “uma sociedade decente”? Onde é que já ouvimos isto? É preciso pensar um bocadinho, mas depois dá para chegar lá. Foi aqui: “Há um telejornal que sistematicamente faz campanhas ad hominem no limite daquilo que é tolerável numa sociedade baseada na decência.” A frase foi dita por Pedro Adão e Silva em 2009 durante o XVI Congresso do PS. Na época, a vítima de “campanhas ad hominem” que punham em causa “uma sociedade baseada na decência” era José Sócrates, que Pedro Adão e Silva insistia “não estar acusado de nada”; e os propagadores das “campanhas ad hominem” que punham em causa “uma sociedade baseada na decência” eram, em primeiro lugar, “o telejornal da TVI de sexta-feira” e, também, o jornal Público, que, segundo ele, “deveria ter uma postura diferente daquela que tem”.

Convém ser claro para que não haja qualquer confusão: como é evidente, António Costa em 2024 não é igual a José Sócrates em 2009. De maneira absolutamente nenhuma — nem igual, nem remotamente parecido e seria até insultuoso afirmar ou insinuar o contrário. Não é isso que está em causa; o que está em causa é isto: Pedro Adão e Silva em 2024 é que é igualzinho a Pedro Adão e Silva em 2009. Sempre que a Justiça ou os jornais incomodam o PS, o comentador-ministro-comentador vê aproximar-se a inevitável e bíblica extinção da “sociedade baseada na decência”, imagina-se que com a mesma espetacularidade com que Deus extinguiu Sodoma e Gomorra. Para Pedro Adão e Silva, o Ministério Público e a imprensa nunca acertam e o PS acerta sempre. Não se pode dizer que seja propriamente uma enorme surpresa.

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