Para Edmund Burke, nenhum representante pode prescindir de viver na mais próxima correspondência com os seus constituintes e de os ouvir. Contudo, se esse representante sacrificar a sua opinião, o seu julgamento e a sua consciência para agradar a terceiros estará a fazer tudo menos servir os seus constituintes. Como tal, instruções de autoridade ou ordens [e cheques em branco], que exigem ao representante obediência cega através da defesa em temas que colidem com a sua convicção e consciência, são inteiramente reprováveis. Governar e legislar são questões de razão e de julgamento, não de inclinação ou de favorecimento.
Para mim, esta visão é integralmente aplicável a um partido político. A gestão de um partido não é um exercício de agradecimento ou adulamento a quem manda. Pelo contrário, requer a exigência contínua da critica construtiva.
Lealdade e obediência são o mote desta reflexão. Os partidos estatistas e com tendências estatistas, assim como com regras internas incompatíveis com os procedimentos que caracterizam a democracia representativa, não são tidos em conta excepto para exemplificar o que não deve ser feito. Refiro-me, no âmbito parlamentar, ao Bloco de Esquerda, ao Partido Comunista Português e ao Chega. Qual é um dos principais motivos para excluir estes partidos? A incapacidade e a intolerância para lidar com as oposições internas. Em alguns destes partidos nem sequer existe oposição interna. Noutros, só a mera discordância ao líder é suficiente para os ataques pessoais mais infames, repugnantes e vis. Ora, até para lembrar os mais esquecidos algo que faz parte da essência da democracia, precisamente por significar pluralismo, a oposição interna é um requisito fundamental. Ser oposição não é ser desleal. A não concordância com o líder não significa deslealdade aos valores e princípios do partido.
Dito isto, é triste assistir ao que se passa. Passámos da obediência ao chefe do regime para a obediência ao líder partidário. É perceptível que muitos (há excepções) daqueles que são escolhidos para pertencer a cargos nos órgãos sociais dos partidos dão primeiro a sua obediência ao respectivo líder e só depois consideram a lealdade aos valores e princípios do partido. Infelizmente, isto também acontece porque os líderes partidários, ao evidenciar pouca paciência para a oposição interna, estão receptivos a este tipo de comportamento, induzindo à obediência. Mas há outro ponto a referir. Quem, por mais capaz e competente que seja, não obedece ao líder dificilmente fará parte das listas aos actos eleitorais.
Recebi mensagens sobre o que expressei meu último artigo – Uma nova forma de estar na política. Para responder tenho de repetir duas ideias que referi nesse artigo. Primeiro, é no interior dos órgãos partidários que se devem expressar as opiniões, independentemente de serem contrárias ou não ao que o líder do partido defende; Segundo, a lealdade era uma via de dois sentidos. Não pode ser de outra maneira. A lealdade tem de estar fundamentada em confiança mútua. Logo, não é possível pedir apenas lealdade. É imperativo retribuí-la. Caso contrário, passamos a falar de obediência.
Então, a quem é devida a lealdade num partido? Na minha opinião, não é possível responder sem ter em conta o que é perene e o que é transitório. A perenidade está relacionada com as ideias, com os valores e com os princípios. Por sua vez, a transitoriedade está ligada àqueles que ocupam cargos no partido. Assim, penso que a primeira lealdade é com as ideias, valores e princípios que o partido representa. De seguida vem a lealdade aos verdadeiros detentores da soberania partidária, os membros, pelo respeito às decisões que tomam em reuniões magnas. Finalmente, como é óbvio, também deve haver lealdade para com o Presidente do partido. Contudo, saliento que qualquer lealdade que seja devida ao Presidente deve acontecer pela sua consistência na representação das ideias, valores e princípios do partido.
Isto leva-nos a uma questão paralela. O modelo de gestão dos partidos. Um partido não pode ser gerido como uma empresa (excepto na parte económica e financeira). A natureza de um partido é distinta da duma empresa. Estas não são entidades democráticas. Têm dono(s) e o Presidente não é o dono do partido. Antes pelo contrário. O Presidente é o primeiro servidor de um partido. Obviamente, há nuances a ter em conta. Mas a ideia é clara. Ordens e obediência são a antítese da responsabilização e lealdade.
Diz-se, e bem, que os liberais desconfiam do Estado, desconfiança essa que é salutar, desejável e que deve ser incentivada por precaver abusos de poder. É errado que este tipo de desconfiança exista num partido liberal? Há quem pense que sim. Há quem pense que não deve haver escrutínio ao Presidente do partido. Há quem pense que a única lealdade aceitável é a obediência. São opções. Eu, apesar de respeitar as opções dos outros, discordo.
E como acredito que o que Burke expressou há 248 anos permanece válido – Governar e legislar são questões de razão e de julgamento, não de inclinação ou de favorecimento (gerir um partido também o é) – quer como mero membro, quer como dirigente eleito, jamais prescindirei da minha opinião, do meu julgamento e da minha consciência para tomar decisões.
Obediência? Comigo não. Sou um livre-pensador e aceito as consequências dessa escolha. A minha lealdade será sempre em primeiro lugar para com as ideias, os valores e os princípios do meu partido.
Esta também é a razão pela qual continuarei a desconfiar do Estado, mesmo quando Portugal tiver um governo liberal.