Antes de continuar, mais vale prevenir que não sou monárquica nem republicana. Para mim, a questão é irrelevante. O que me interessa é saber se um regime, qualquer um, garante as liberdades fundamentais; o resto são pormenores. Tendo vivido a minha vida sob um regime autoritário, num país cujo único vizinho era um caudillo galego que iniciara uma ignóbil guerra civil, não admira que assim pense.

Foi a esta luz que apreciei a forma como rei de Espanha actuou, tendo a minha avaliação sido invariavelmente positiva. Tenho pena que os seus últimos anos tenham decorrido sob os holofotes, a propósito de dois escândalos, como o de se ter dado ao luxo de participar em caçadas dispendiosas em África (num momento de grave crise económica dos seus súbditos e para mais sendo ele Presidente de Honra da organização WWF) e ainda o de ter cometido adultério, um pecado comum entre os Borbóns mas que, no século XXI, não é encarado com a bonomia dos séculos pretéritos.

Ao ter recebido a notícia da sua abdicação, fiquei a pensar neste homem que, em 1956, se cruzara comigo em Cascais. Digo cruzara porque, tanto quanto me lembro, ninguém nos apresentou. O rapazito, de cabelo encaracolado, pareceu-me tímido. O que ignorava era que, nesse ano, vivera uma tragédia: ao brincar com uma espingarda, matara o irmão mais novo, Alfonso. Nos meus treze anos, nada me interessava menos do que dançar com ele, embora todas as minhas amigas quisessem conhecer o “D. Juanito”, uma pretensão que considerei imediatamente ridícula.

Em geral, o príncipe não aparecia na praia, mas havia um grupo restrito, entre os quais os Arnosos, que, por praticarem vela, se davam com ele. No final de um Verão, comecei namoro com o João Arnoso, mas, como era com os irmãos mais velhos que o príncipe se passeava de iate, não creio que o tenha voltado a ver. Passaram-se anos sem pensar em Espanha, muito menos na questão dinástica. Em 1963, casei com um filho do Embaixador português em Espanha, Luís Pinto Coelho, tendo passado a ir lá de vez em quando. Mas o Príncipe de Espanha pouco era mencionado: o Generalísimo, que logo me pareceu horrendo, ocupava toda a cena.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Desde 1955 que D. Juan Carlos frequentava academias militares espanholas, o que não deixara de criar tensões entre o pai, um liberal, e o filho, educado dentro das rígidas convicções do conservadorismo espanhol.

Em 1969, D. Juan Carlos foi designado herdeiro da Coroa, tendo-lhe sido conferido o título de Príncipe de Espanha. Durante o período da doença de Franco em 1974/75, quando ele actuou como Chefe de Estado, nada deixou transparecer sobre as suas ideias políticas.

Depois da morte do Generalísimo, as Cortes Gerais proclamaram D. Juan Carlos rei. Foi então, no seu discurso inicial, que apontou as linhas mestras do reinado: restabelecer a democracia e ser rei de todos os espanhóis. Em 1977, o conde de Barcelona, com quem, mesmo durante a vida de Franco, o filho se tinha aconselhado em segredo, transmitiu-lhe a chefia da Casa Real e, pouco depois, tiveram lugar as primeiras eleições democráticas em Espanha desde 1936, tendo o Parlamento elaborado a actual Constituição. Do que se passava na alta sociedade madrilena apenas tinha rumores, através de uma irmã há muito ali vivendo e que estava rodeada dos portugueses que, após o golpe de 1974, haviam optado pelo exílio.

Em Fevereiro de 1981, após um dia passado na praia de Moledo, olhei, estupefacta, a televisão: em Madrid, um tenente-coronel, tendo na cabeça um daqueles ridículos chapéus dos carabineros, entrara, de pistola em punho, na sala das sessões da Câmara dos Deputados, onde o primeiro-ministro, Calvo Sotelo, ia ser confirmado; em Valência, o general Milans del Bosch, comandante da III região militar, declarava publicamente apoiar Tejero. Os parlamentares e os governantes estavam reféns dos golpistas.

De madrugada, envergando o uniforme de Capitão General dos Exércitos, o rei apareceu na televisão, apelando a que os insurrectos se rendessem, o que viria a acontecer. Muito de discutiu, na altura e depois, um possível envolvimento do rei na conspiração, mas nada se provou. A forma como a Espanha passou de uma ditadura, nascida de uma guerra civil, para a democracia é um milagre. Isso deve-se, em grande medida, à actuação do rei. A Espanha acompanhou, com atenção, o PREC português, o que terá dissuadido muitos de entrar por caminhos semelhantes. Por outro lado, ao contrário de Portugal, a Espanha há muito que deixara de ter colónias. O trauma da descolonização sentira-o este país, em 1898, com a perda de Cuba. Pelo menos a este respeito, os espanhóis tiveram sorte.

No difícil momento de transmissão da Coroa a seu filho Felipe, o rei tem de ser lembrado, quanto mais não seja pelo seu papel durante o complexo período da transição para a democracia. Ninguém seria capaz de prever que a criança, nascida em Roma, em plena batalha de Teruel, seria um dos agentes da metamorfose. Muito menos eu que, em 1956, o achei feio, estúpido e antipático.