1 Pequeno prólogo: lembrei-me hoje de ser optimista, valendo-me de um testemunho suficientemente forte – o seu autor também é – para merecer notícia. Não se sabe se despertará alguém da sonolência nacional onde o país se acolhe, o que sei é que merece noticia. Fica aqui.

2 Corria Março e estávamos na Gulbenkian onde se tratava de homenagear Manuel Braga da Cruz que ali mesmo recebia o prémio “Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes” com que fora distinguido pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. Foi um grande momento. Pelo prestígio do prémio, pela invulgaríssima categoria do premiado. Parecia até que a ausência e carência de momentos assim em Portugal lhe ampliaram ainda mais a significativa grandeza.

Na plateia sentava-se – não por acaso – uma boa parte do que resta de uma sociedade civil independente e incólume destes feios dias; no palco, ao lado do Bispo D. João Lavrador e do júri, José Miguel Sardica ocupou-se em “trazer-nos” Manuel Braga da Cruz: em carácter, alma e mente; em actos, ofícios e obras. Ciclópica tarefa: o currículo de Braga da Cruz conta 82 páginas… mas oh que invejável brilho na oração.

E no entanto… não pode ter sido fácil abarcar de forma tão sedutoramente audível a riquíssima vida de alguém que a tanto chegou por considerar simplesmente que era a sua obrigação fazê-lo. Cumprindo com exigência, servindo com honra. Cidadão amável e afável, imediatamente acolhedor; homem de cultura de inesgotável curiosidade, intelectual imune aos sucessivos ares do tempo a não ser aos da sua consciência; sociólogo, académico, reitor, autor, estudioso da historia, praticante da cidadania e um grande homem de Igreja. De tudo isto nos falou com inspirada eloquência o professor Sardica. Manuel Braga da Cruz desmultiplicou generosamente o seu saber em prol de alunos, instituições que dirigiu, obras que escreveu, estudos, opiniões e intervenções que a Igreja sempre lhe pediu. Foi – é – ouvido, seguido, respeitado. (À hora a que escrevo, está a ser condecorado pelo Presidente da República numa cerimónia que quis privada e sem aparato).

Escrevendo estas breves linhas, apercebo-me que vou reter as duas “coisas” que nele mais aprecio, quem sabe aquelas que melhor o explicam e mais o definem. O orgulho da pertença familiar: à família de onde vem – minhota e beirã – e vaso onde fermentou a massa de que é feito. O pai, Guilherme Braga da Cruz, um grande mestre, foi um notabilíssimo reitor da Universidade de Coimbra de quem o filho escreveu a biografia); à família que o próprio Manuel formou, porto de abrigo de uma vida; ao seu berço português, que fez dele um patriota. E sobre tudo isto, dentro de tudo isto que é imenso – a man for all seasons? – o homem de fé: fidelidade e compromisso sem mácula nem vacilação ao catolicismo e à Igreja. A boa estrela que lhe inspira o verbo e conduz o gesto, não é senão a convicta certeza dessa fé que ele sempre soube não apenas compatível mas complemento indispensável dos seus passos pela vida. No que pensou, disse, escreveu e fez. Naquela tarde de quase primavera, ouvir estes testemunhos – o elogio de José Miguel Sardica e as palavras do próprio Manuel, Braga da Cruz – foi também uma pequena luz no desamparo aflitivo da vida hoje da nossa Igreja. E no momento aterradoramente confuso sobre o que ela se escreve ou se garante: misturando justiça e sanção com intriga e ciladas; transparência com manipulação, trigo com joio. Na oitava da Páscoa da Ressurreição, fiquemos com o testemunho. Um dia virá outra maré (tem sido assim há dois mil anos).

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