A perturbação de ansiedade regista um pico no gráfico do continuum histórico, onde picos passados, afins a outras calamidades, perdem relevância à medida que ficam para trás no tempo. Assim, em breve, a pandemia perderá fulgor e todos actores, dos media às organizações que analisam e gerem a crise de forma tangencial à psicose, encenarão novos dramas na humanidade em stress pós-traumático.
Ainda em colapso, a actualidade mostra um corte disruptivo sustentado pela crise sanitária com impacto proporcional às fragilidades individuais e dos países. Entre nós, medo e tédio dominam o estado psíquico. Há uma sombra de instabilidade permanente associada a diretivas, confinamentos, desconfinamentos, estado de emergência, restrições, e em especial à excessiva mediatização, stressores que perturbam uma larga maioria que cedeu ao desânimo, à desesperança. Em tempo de Natal, as ruas iluminadas por milhares de euros estão desertas em muitas cidades, restaurantes e cafés vazios, mesmos nos períodos em que há liberdade de circulação. Perdeu-se a alegria, desconfia-se da liberdade, a cada minuto ouvimos um perito pronunciar-se em formato de delírio persecutório. Entretanto habituámo-nos a ficar em casa, a não sair para tomar café, e jantar fora tornou-se uma afronta à saúde pública.
Não há promessas de apoio que dissipem o clima de pessimismo estagnante, pois bem sabemos o desacerto tendencial das soluções no nosso país, sobretudo porque somos regidos por paradigmas fechados à alteração do mindset político e social. Há noção de que é preciso mudar mas ninguém sabe bem o quê. Falta linha ideológica coerente e motivação da sociedade em oposição ao Estado atávico, cuja principal estratégia é hipotecar o desenvolvimento, empurrando para a frente uma dívida pública humilhante, em ciclo vicioso, fruto de desvarios passados e presentes, e, ao que tudo indica, futuros.
Depois da pandemia, “tudo ficará como dantes no quartel de Abrantes” e mais ainda no de Tancos depois de armas achadas e regressadas ao seu lugar. A sabedoria do provérbio serve para ilustrar a redundância da natureza dita humana, manifesta na circularidade de questões ancestrais com novas configurações. Assim é a dificuldade déjà vu no “achamento” de culpados. Estes episódios de telenovela dos quais já todos sabemos o final, normalizam o anormal cenário ocupadíssimo em defender as cores da camisola, e onde governação mais parece mais exercício de sedução a eleitorados sem opinião formada.
Em sobressalto social a opinião é vulnerável a “profetas da desgraça” com rede lançada aos frágeis, sem tempo nem disposição para reflexões, cansados da marmita e de se levantarem pela madrugada rumo a um emprego remunerado com 700 euros. Outros, igualmente frágeis, com pensão cortada a meio pela conta da farmácia, passam as manhãs televisivas sob o jugo de conteúdos pobres e apresentadores que padecem do “síndrome da gargalhada compulsiva e imotivada”. Na solidão do envelhecimento e sem serviço streaming, cresce público com opinião flexível, sem capacidade de escolha informativa, que favorece o sufrágio de gente generosa e o aumento da pensão… em 10 euros.
Entre lágrimas e gargalhadas, paira sobre todos uma bipolaridade que vai rapidamente da depressão à mania. E haverá gente sem opinião formada? Em instantes, somos todos peritos, doutos, ás pronto a opinar sobre qualquer assunto. Ora entre o atrevimento do “eu acho” sobre uma matéria de que nada sei, e a opinião fundamentada de quem investiga, encontramos um emaranhado de “teorias” nas redes e outra comunicação social, “suporte científico” com sintaxe de reality show que contamina os mais ilustres discursos da nação.
Esta ambivalência de tudo parecer fácil, à mão de um clique, mas nada se poder fazer para mudar a ordem social, dá origem a radicalismos à esquerda e à direita, nichos de refúgio dos que não se identificam com a cultura de massa, adultos jovens revoltados, vítimas das irresponsabilidades políticas que procuram um mundo perfeito. Todos temos, certamente, momentos de radicalização, especialmente face aos privilégios elitistas, à corrupção e à mobilidade social segundo a lógica da cunha, dos conhecimentos, dos contactos e da militância política, mas, de pouco vale construir muros de guarda às instituições na esperança de um equilíbrio que será sempre precário.
“Vivemos em tempos líquidos. Nada foi feito para durar,” referiu Zigmund Bauman (1925- 2017). Entre a queda do muro de Berlim e a construção do muro de Trump, quantos muros se levantaram e caíram entre humanismo e nacionalismo? É o homem crónico, demasiado instintivo, insaciável, e o seu olhar vacilante de emoções sobre a vida, sempre aterradora nos dramas e insuficiente nos prazeres.
A crise humanitária veio sublinhar o carácter fluído das relações sociais e laços humanos, onde facilmente se procura benefício no prejuízo do outro. Estamos longe de uma ética para a coexistência, lapso que atravessou séculos com inalterada agressividade, prepotência e falta de empatia. Traços nos horrores de hoje vistos no passado, portanto, quando alguém disser “vem aí um novo normal”, terei de discordar, pois nada é novo, muito menos normal.