Diz-se por aí que a maioria absoluta é o problema. E até que as maiorias absolutas são um problema. Que é o poder absoluto a causa da degradação governativa e do aparelho do estado a que temos assistido e que se expressa também naquilo a que se vai chamando de “casos e casinhos”. Pois não poderia estar mais em desacordo. Quem não gosta de maiorias absolutas não gosta da democracia, porque a maioria absoluta é a expressão mais acabada da escolha popular: a vontade clara da maioria dos eleitores. E quem tem medo das escolhas, da clareza e do poder que delas resulta, não gosta da democracia.

Já as “gerigonças” da vida, os arranjinhos pós-eleitorais com a construção de maiorias artificiais de conveniência, acompanhados por distribuição de lugares e tachos às clientelas e àqueles que dias antes se insultavam em campanha, isso sim, são perversões da escolha livre dos cidadãos e degradam a credibilidade da classe política. Porque traem as convicções dos que ainda votam. E porque aniquilam o espírito rebelde e de protesto público das oposições, integradas no eixo da governação.

Não minto se disser que, em 2015, não passava pela cabeça de um só eleitor a solução governativa que foi encontrada com a geringonça. Solução nunca sequer admitida em campanha. Sim, a “geringonça” foi constitucionalmente legítima, mas esteve muito longe de ser uma escolha dos cidadãos eleitores e, nesse sentido, foi muito pouco democrática. Já a maioria absoluta agora obtida pelo PS é a clareza absoluta da vontade popular. Não podemos, por isso, legitimar a escolha inconsciente dos eleitores em 2015, chamando-lhe “democracia a funcionar”, e, agora, darmos por nós a desdenhar numa escolha clara, objetiva e concretizada pelos eleitores em 2022, chamando “poder absoluto” àquilo que, afinal, é muito mais transparente e democrático: o PS ganhou, deixemos o PS governar.

A maioria absoluta é o instrumento mais favorável que a democracia pode dar aos governantes para que possam ser coerentes, cumprir o programa sufragado e serem depois devidamente responsabilizados perante os vários órgãos de soberania e, já agora, também perante a comunicação social e, consequentemente, perante a opinião pública: os eleitores. E ninguém deve ter vergonha de a pretender, porque ela é o melhor instrumento para o cumprimento de convicções, ideologias e de um programa eleitoral, sem expedientes.

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Dir-se-á que, no presente, é em maioria absoluta que os maiores problemas e sinais de tomada do estado pelo partido têm ocorrido, degradando o poder e pondo em causa a credibilidade das instituições e do próprio governo. É verdade, mas terá sido a circunstância de haver uma maioria absoluta ou será antes o efeito do prolongar de um mesmo Primeiro-Ministro e partido no poder durante demasiado tempo?

A História de meio século de democracia não confirma a tese de que a maioria absoluta seja culpada. Cavaco Silva teve duas maiorias absoluta, mas os mesmos sinais de degradação e confusão entre estado e partido a que agora assistimos com o PS ocorreram no seu último mandato e não na sua primeira maioria absoluta. José Sócrates esteve vários anos no poder e teve uma maioria absoluta. Mas a grande confusão entre estado e partido, a acelerada degradação das instituições e a tentativa de controlar tudo e todos ocorreram sobretudo no último mandato, já sem maioria absoluta.

Por mais que a História seja dura com governantes como Cavaco ou Sócrates (frisem-se as enormes distâncias entre ambos), a verdade é que os dois conseguiram fazer roturas, obra e reformas interessantes para o País nos seus primeiros mandatos, a ponto de mereceram reeleições sucessivas. E ambos mostraram uma cultura democrática muito mais interessante nos primeiros anos de governação, mas cada vez mais degradada e desfasada do país à medida que o tempo passava.

Podemos culpar as maiorias absolutas que conquistaram por esse processo degenerativo da governação? Não podemos, já que no primeiro caso Cavaco Silva fez dois mandatos completos em maioria absoluta, e no segundo o descambar de Sócrates só aconteceu já sem ela.

Por oposição, ficaremos sem poder fazer o contra fatual relativamente a Passos Coelho ou mesmo a António Costa. Teriam os períodos da Troika e pós-Troika sido melhores ou piores sem que estivessem reféns de partidos e idiossincrasias como as do CDS ou do Bloco de Esquerda?

A verdade é uma: com Cavaco ou com Sócrates foi o prolongamento no poder que levou à degradação da governação, às más escolhas, à confusão entre estado e partido e ao “descolamento” da realidade a que, recentemente, o Presidente da República se referiu. O encapsulamento das elites em convenientes bolhas de “yes mans” e dependentes, o medo e falta de paciência para com a crítica e a ilusão do domínio de todas as ferramentas do poder ao seu dispor, fazem dos políticos que prolongadamente se sentam no poder uma espécie de extraterrestres que, já não se vendo senão no alto das suas naves espaciais, se dedicam a abduzir os mais fracos, distribuindo-lhes pratos de lentilhas, e a eliminar, a laser e sem sujarem as mãos, quem os enfrenta.

Quando olhamos para o atual estado de coisas no país e vemos a sucessão de decisões duvidosas e até espantosas relativamente a nomeações, contratações e confusões entre estado, governo e partido, somos levados a crer que aquilo que é agora diferente é o PS estar a governar em maioria absoluta. Mas se olharmos ao pormenor e com maior seriedade, podemos perceber que todas as decisões controversas que António Costa e o seu governo tomaram e que tantos problemas lhe têm causado, poderiam todas ter acontecido sem maioria absoluta.

Costa não precisava do poder total para escolher maus ministros, secretários de estado e diretores gerais. Os seus ministros não precisaram da maioria absoluta para publicarem decretos absurdos sobre aeroportos ou para anunciar inopinadamente a decisão de abolir exames nas escolas. Os secretários de estado não precisavam do absolutismo para aceitarem empregos em áreas por si tuteladas depois de saírem do governo ou para aceitarem cargos mesmo sendo arguidos. Não foi a maioria absoluta que transformou Costa e o PS em perfeitos incompetentes na gestão política de todos estes casos. Foi o prolongamento no poder e a paulatina e implacável caminhada do partido ao abduzir o estado, que lhe deu essa absurda sensação de poder eternar-se no olimpo.

A forma quase automática como os “boys” e as “girls” sobem nos partidos do chamado arco do poder, nada tem a ver com maiorias absolutas e nem delas depende. O que provoca esse fluxo de nomeações, nepotismo e corrupção ocorre sobretudo pelo caldo de cultura que se vai criando com o tempo nas instituições públicas, que se torna orgânico e que só o tempo explica. Porque só o tempo permite que se vá preenchendo os espaços vazios, eliminando os “checks and balances” e alimentando o monstro de um só corpo e duas cabeças: estado e partido.

Se olharmos para outros países ou para outros órgãos democráticos da organização do estado em Portugal, para governos regionais e autarquias, encontraremos muitas maiorias absolutas benignas em princípios de ciclos governativos. E sempre encontraremos gritantes confusões entre instituições e partidos ou movimentos com a passagem do tempo e com o prolongamento no poder, independentemente da forma como se obtém a viabilidade governativa, com ou sem maioria.

“Não se pode nomear ninguém para um cargo na região sem falar com o presidente da distrital [do PS]”, declarou recentemente ao jornal Público um dirigente socialista, a propósito da nomeação por parte do ministro João Galamba de um presidente para a APDL, entidade pública que gere o porto de Leixões. Eduardo Vítor Rodrigues é o presidente da distrital do PS em causa, mas é também presidente da Área Metropolitana. Contudo, o que prevalece no aparelho socialista é a sua autoridade partidária para nomear “boys”, não a sua legitimidade democrática e institucional para aconselhar bem o ministro.

Este é um bom exemplo de entorse do equilíbrio de poder entre estado e partido, mas nada tem a ver com a maioria absoluta, pois o Ministro dela não precisava para nomear o presidente do porto de Leixões. E é também um bom exemplo de como o poder prolongado e a escalada que ele proporciona consegue cumprir à risca o “princípio de Peter”.

Salazar só proibiu os partidos da oposição após mais de dez anos de Governação. Hitler foi eleito democraticamente e não lhe ocorria então invadir a Polónia. Não foram maiorias absolutas que levaram a derivas totalitárias por esse mundo fora, nem foram elas que transformaram estados ou municípios em feudos de elites partidárias e de interesses económicos. Foi o poder prolongado que os fez pensar que, a determinada altura, se o povo discordava das suas decisões, então era o povo que estava errado. E foi o poder prolongado e os acólitos designados nos lugares certos, que lhes deram a falsa sensação de que eram serem superiores e infalíveis.

Quem está muito tempo no poder vai, invariavelmente, aprendendo perversos caminhos governativos que lhe permite ir comprando instituições, opositores e comunicação social, desfasando-se do dever, da procura da competência e sobretudo do povo eleitor, cujas queixas e críticas, mas até já os beijos e abraços, acabam por lhe meter nojo.

O domínio das ferramentas que o poder proporciona, a bolha de acólitos e oportunistas que em seu torno de agrega e o vício da notoriedade desumanizam os líderes políticos à medida que o tempo passa, até à queda do anjo. E nada disso tem a ver com a maioria absoluta.