O “politicamente correto”, ou seja, as afirmações que são ditas com a intenção de procurar satisfazer o maior número de ouvintes, preferencialmente votantes, já domina a comunicação em saúde pública. Geralmente, no que ao politicamente correto se refere, há mentiras descaradas ou mentiras piedosas que são uma versão do descaramento, mas ditas com boa intenção. Nos últimos dias, relativamente à epidemia mais recente de coronavírus temos tido muito do “politicamente correto”.

A verdade que ninguém assume é que, num cenário semelhante ao que tem acontecido na China, especialmente em Wuhan, não há resposta possível no sistema de saúde português e, ainda menos, se só nos focarmos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Basta ver o que sazonalmente acontece com a “banal” gripe, logo que a estirpe é mais agressiva, para se perceber a verdade. No caso deste coronavírus, o cenário epidémico é particularmente grave porque é um vírus novo para a espécie humana e não há imunidade de grupo, não existe vacina, não há antivirais eficazes, há transmissão antes da fase clínica da doença e nem se conhece bem a taxa de ataque, ou seja, a velocidade de propagação. É verdade que se trata de uma doença com muito baixa letalidade e, ao que parece e como é habitual nas infeções respiratórias, mais grave em fumadores, portadores de outras doenças respiratórias, imunocomprometidos, e idosos. Será o fim do mundo? Certamente, não.

Mas não sendo o antecipado fim da espécie humana, essencialmente possível por sermos já demasiados na Terra, é uma situação epidémica altamente consumidora de recursos e muito perturbadora do normal funcionamento da economia. Logo, é uma ameaça global ao bem-estar da humanidade. Temos, em Portugal, os recursos que seriam necessários para responder ao número de casos que, na devida proporção, já aconteceram na China? Não. E eles também não tinham. Não temos capacidade nos serviços de urgência, nem médicos nem enfermeiros, nem ambulâncias, nem escafandros (equipamentos de protecção individual) de nível máximo, nem quartos de isolamento com pressão negativa em quantidade suficiente, nem ventiladores, nem sequer camas de hospital. Nem nós, nem ninguém, em boa verdade. Uma epidemia de proporções bíblicas, o que não parece ser o caso no que ao coronavírus 2019 diz respeito, não é uma situação para o qual os serviços de saúde estejam preparados. Nenhum país tem esse nível de preparação.

Em comunicação política utiliza-se muito um fenómeno que em língua inglesa se chama “negativity bias” (em português poderá ser viés de negatividade). As pessoas tendem a prestar mais atenção às notícias negativas do que às boas notícias. E, quando as pessoas são confrontadas com uma má notícia, em particular se houver um risco que se pressinta (geralmente por proximidade), alguém que venha dizer que está tudo sob controlo é um herói. Avisadamente, a nossa ministra não perdeu a oportunidade de faturar politicamente com esta epidemia potencialmente perigosa para os Portugueses. Bem precisava de qualquer coisa. Todavia, correu o risco de mais tarde, se as coisas correrem para o pior, lhe cobrarem aquilo de que certamente não terá culpa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quer isto dizer que condeno o espetáculo confrangedor a que ministra da saúde e os altos dirigentes do ministério se têm prestado? Não. Tristíssimo foi o desempenho da ministra da agricultura que, sem nenhuma sensibilidade para com os que já estão doentes e até morreram, veio dizer que esta epidemia seria boa para as exportações. Não é. Dito por um não socialista seria o que foi. Uma declaração de racismo inaceitável.

Imagino como tem sido doloroso, aos técnicos competentes que dirigem a Direção-Geral da Saúde (DGS) e o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), apresentarem-se na TV para dizerem banalidades enquanto os já célebres 20 de Wuhan eram desembarcados na Portela, mais concretamente num canto a que insistem chamar Figo Maduro, e depois, em penosos dias sucessivos, virem relatar a evolução do estado de saúde dos que aceitaram voluntariamente isolar-se. Mas a verdade é que sem comunicação, por mais vulgar que ela seja, a tendência normal é para que se desconfie de que, sem notícias, esconde-se qualquer coisa. Na China isso tem acontecido, o que não é bom para o controlo da propagação da epidemia. A história ensina-nos que o pânico se propaga mais depressa do que as infecções. É o descontrolo pelo “negativity bias”.

Mas é importante ser cauteloso e não dizer que estamos preparados. Confesse-se com honestidade que estamos tão preparados quanto é possível estar, melhor do que muitos e pior do que outros, enquanto tudo decorrer num contexto de normalidade epidémica de que as pandemias de gripe são um exemplo. Não me poupo em elogios à forma competente como as autoridades, incluindo o governo e a Dra. Ana Jorge, responderam à última pandemia de gripe. Mas os meios disponíveis, incluindo a existência de tecnologia para desenvolver vacina e de oseltamivir, eram bem melhores do que os que possam ser convocados para responder ao coronavírus. Lembro-me de ter tido necessidade de ir à Arábia Saudita e Emiratos em plena época de MERS (a segunda epidemia de coronavírus). O melhor conselho que tiveram para me dar foi…”não contacte com camelos”. Resultou. Sabia-se que este simpático animal era o reservatório e não haveria mais nada a fazer. Para o coronavírus agora em fase epidémica, ainda não se sabe como responder e o que de melhor tem sido feito é a tentativa, eventualmente pouco eficaz, de contenção na origem. Foi o que funcionou na SARS, o nome porque ficou conhecida a primeira doença epidémica humana provocada por um coronavírus. O Canadá, a exemplo da China, usou com sucesso medidas de quarentena. E é aqui, na capacidade de contenção física dos potencialmente infetantes, que não temos preparação nenhuma.

Já me referi a isto em textos anteriores. Portugal não tem uma lei que permita a imposição judicial ou sanitária de quarentena para pessoas que possam ser consideradas de risco quanto à transmissão de uma doença infecciosa. As leituras mais fundamentalistas da constituição da república assumem que só em contexto de doença mental grave, havendo legislação específica para estes casos, se pode ordenar o internamento compulsivo. Ainda pior, Portugal é signatário da mais recente convenção da ONU sobre direitos de pessoas com incapacidade, de 2016, que proíbe qualquer tipo de internamento compulsivo. Logo, em breve, se Portugal quiser cumprir com a convenção que assinou (não devem ter lido tudo quando se apressaram a assinar o texto) deve mesmo revogar toda a legislação em vigor sobre internamento compulsivo de doentes mentais graves, o que é altamente controverso.

Quando tivemos a ameaça de Ébola, muito menos grave do que os riscos colocados pelo coronavírus, esta questão da ausência de instrumento legal que habilitasse o Estado a garantir de forma integral o direito à proteção da saúde dos seus cidadãos foi levantada. Em colaboração com a DGS, o Ministério da Saúde elaborou um projeto de lei que propunha, em moldes semelhantes ao que acontece para doenças psiquiátricas graves, um sistema de validação por juiz, a pedido do diretor-geral, de internamentos compulsivos de pessoas que pudessem criar riscos inaceitáveis, a nível individual ou de terceiros, não sendo internados. O governo entendeu que seria, como é evidente, muito mais relevante e passível de discussão ampla se houvesse uma proposta de lei e não um projeto emanado do governo. O grupo parlamentar do PSD, através da interpretação que fizeram do que seria a visão constitucional do diploma, entendeu não transformar o projeto em proposta de lei.

Estou certo de que no momento e nas condicionantes existentes, com o Ébola em recuo e havendo enorme hostilidade política contra tudo o que fossem iniciativas da maioria entre 2011 e 2015, foi uma boa decisão. Mais do que “politicamente correta”, foi a constatação de que não faltaria quem viesse dizer que os ”fascistas” – tudo o que já não era da geringonça em embrião – estavam a preparar-se para atentarem contra as conquistas de abril. Infelizmente, apesar de termos deixado tudo preparado para a legislatura seguinte, com a mudança de governo o diploma ficou esquecido e deve dormir na cave da João Crisóstomo. A oportunidade política, o alerta da população perdeu-se.

Agora, chegada mais uma epidemia das muitas que aí virão, talvez fosse oportuno voltar a este tema sobre o qual já em tempos escrevi neste jornal. É um tema bem mais prioritário do que a eutanásia ou a legalização das drogas “leves”. O que é mais importante? A salvaguarda da liberdade de cada um, seja em que circunstâncias for e mesmo se essa liberdade colocar em risco toda a sociedade, ou a garantia do direito à proteção da saúde, a de cada e a de todos?

Quando a senhora diretora-geral anunciava que os repatriados Portugueses não ficariam de quarentena, ao arrepio do bom senso e das decisões tomadas por outros, fê-lo por não ter nenhum instrumento legal que lhe permitisse impor o isolamento dos 20 de Wuhan. Depois, como se impunha, lá foi dizendo que afinal haveria quarentena. O que mudou? Apenas a boa vontade dos repatriados que aceitaram, presume-se que voluntariamente e sem ameaças ou coacção psicológica, ficar no “conforto” de um hospital da rede pública. E se tivessem recusado?

No meio de tudo isto ficou a muito louvável confissão da nossa ministra da Saúde de que as condições hoteleiras no Hospital Pulido Valente e Júlio de Matos são sofríveis e não as mais adequadas para receber as pessoas em quarentena. Nem internet tinham. Custa a acreditar, mas a verdade é esta mesmo. Os hospitais da capital têm uma hotelaria muitas vezes deplorável, desde o conforto à alimentação. Pena que mesmo agora, quando “internaram” saudáveis, ainda não tenham percebido que se as condições de alojamento são sofríveis para quem goza de boa saúde então serão más para quem está doente. É que os doentes ainda têm mais necessidades do que quem está saudável. Calma que este ano há dinheiro para grandes investimentos. Eu nem peço muito, basta que não deixem que o sabão das mãos acabe sem estar quatro dias à espera de ser reposto.