A guerra na Ucrânia apanhou-nos, a muitos, de surpresa, no sentido em que décadas de paz que se seguiram à segunda guerra mundial nos fizeram esquecer o passado bélico da Europa.

É certo que, mesmo que nos tivéssemos preparado, a evolução dos acontecimentos e o comportamento do invasor, em total desprezo e desrespeito pelas regras e normas internacionais, revelou-se muito para além da preparação de qualquer ser humano de boa vontade. Efetivamente, todos esperamos que os atos praticados por dirigentes mundiais, em particular das grandes potências, com acesso ao aterrador botão de lançamento de armas com potencial de aniquilação total, sejam sempre racionais.

O impacto que a guerra na Ucrânia está a ter em todo o mundo despertou uma atenção nunca vista às questões das relações internacionais e da governação do mundo até pelo cidadão comum, habitualmente pouco interessado nestas matérias de interesse longínquo. Mas também um frenesim de procura de informação que permita um maior esclarecimento do público, cheio de interrogações, por parte da comunicação social.

Muita informação de enquadramento tem sido por esta transmitida aos cidadãos, nomeadamente sobre a composição e funcionamento da Organização das Nações Unidas e seus principais órgãos mas também, à medida que se desenrolam os acontecimentos, informação específica, como sejam os requisitos e procedimentos para adesão de um pais à União Europeia – em reação ao pedido de adesão acelerada por parte da Ucrânia – ou à NATO – em reação aos pedidos de adesão da Finlândia e da Suécia. Ou o que reza o direito internacional humanitário em reação aos bombardeamentos de zonas residenciais na Ucrânia, por parte da Rússia, à descoberta de corpos de cidadãos civis em valas comuns ou aos indícios de utilização de armas proibidas. Quem não sabia ficou a saber que até a guerra tem regras, que não é permitido tudo, que a violação dessas normas pode configurar crimes de guerra ou crimes contra a Humanidade e que existe um Tribunal Penal Internacional com mandato específico para julgar esses crimes e condenar os responsáveis.

Este meritório aumento do fluxo de informação parece estar a chegar ao cidadão comum, que comenta a situação nos cafés de forma mais informada.

O que não parece estar a mudar e até aparenta estar em crescendo são as manifestações de incompreensão e perplexidade com a alegada inoperância das organizações internacionais ou mesmo sobre a utilidade da sua existência. Se o fluxo de informação tornou os cidadãos mais esclarecidos, o que me parece estar a faltar é uma explicação circunstanciada sobre a verdadeira natureza do trabalho de instituições como a Organização das Nações Unidas e os motivos que justificam certas ações e resultados ou a respetiva ausência. Ou seja, a explicação da arquitetura, por mais detalhada que seja, se não for acompanhada de uma explicação da mecânica, que não resulta necessariamente da primeira, conduz a uma avaliação sem os necessários fatores de ponderação, o que explica, em meu entender que a perceção da utilidade do trabalho da ONU não seja mais positiva, apesar de os telejornais enunciarem todos os dias regras e medidas que foram criadas no seu seio e sem as quais o mundo seria bem pior.

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E foi assim que me surgiu a ideia de escrever, explicando em maior detalhe o funcionamento das relações internacionais na sua vertente multilateral com ênfase na Organização das Nações Unidas, não sob o ponto de vista da arquitetura – sobre a matéria existe já muita e meritória literatura – mas da sua dinâmica, uma vez que participei em muitas reuniões. O objetivo consiste em derrubar mitos e conclusões perentórias mas precipitadas, porque baseadas na aparência, mas totalmente desconhecedoras da realidade a que tenho assistido, até no seio familiar.

Trata-se assim de um exercício opinativo e não descritivo que visa, podendo-se concordar ou não, preencher o que me parece uma lacuna na literatura existente.

Gostaria com este exercício de ajudar a diminuir as interrogações de carácter existencial muitas vezes injustamente dirigidas às Nações Unidas e a outras organizações internacionais como “para que servem?”, “porque não acabam com a guerra?”, “porque não protegem os civis?”, “para que existem os direitos humanos, se não são respeitados?”, “que interessa existir um direito da guerra se não é respeitado ?”, “o que fazem as Nações Unidas com o dinheiro do seu orçamento, pago por todos nós?”

Para além de ajudar a compreender as competências e limitações daquelas organizações, pretendo argumentar por que a sua existência é tão importante apesar da perceção de inoperância e o quanto já fizeram por nós, nomeadamente para que pudéssemos usufruir de direitos que muitas vezes exercemos sem sabermos que o estamos a fazer.

E explicar que, por muito evidentes que pareçam, estes direitos não têm proveniência nem imposição Divina, resultando antes de negociação entre Estados soberanos, que asseguram entre si a vigilância do seu cumprimento. Bem como as consequências dessa proveniência terrena – e menos santa – dessas regras.

Em suma ajudar a identificar e atribuir o mérito de muitos benefícios de que usufruímos sem pensar quão difícil foi garanti-los e quem desempenhou um papel fundamental nesse exercício.

A recente assinatura de um acordo para o desbloqueio das exportações de cereais da Ucrânia, que tanta falta estão a fazer ao mundo, no qual o SGNU, António Guterres, desempenhou um papel determinante, veio, mais uma vez, demonstrar o quão atenta está a Organização sobre as necessidades do mundo e como o seu dirigente se tem batido pela defesa do superior bem comum. Se, no final, o acordo for cumprido ou não, não está inteiramente nas suas mãos, como demonstra o ataque russo que se seguiu, mas o que gostaria que resultasse deste exercício é que uma avaliação de desempenho só é justa se baseada na efetiva capacidade ou poder de atuação.

A influência da natureza das organizações internacionais, diferença entre organizações intergovernamentais e supra-nacionais e as virtudes e limitações do trabalho das organizações intergovernamentais

Todos nós ouvimos falar, no nosso quotidiano, da Organização das Nações Unidas em geral e das organizações especializadas que a integram ou a elas estão associadas, como a Organização Mundial da Saúde, a Organização Internacional do Trabalho, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura e outras organizações internacionais, como a OCDE, ou a NATO.

Todos sabemos que existem, de vez em quando ouvimos falar de um trabalho ou atividade mais notória, pelo menos no que toca ao interesse do cidadão comum mas os comentários mais habituais – a palavra ‘frequentes’, poderia levar a pensar que lhes é dedicada muita atenção – são de interrogação sobre porque existem e se justificam os fundos que consomem.

Esta perceção sobre a utilidade ou falta dela, destas organizações, tende a agravar-se em tempos de crise ou, pior ainda, de catástrofe, pois é nessas alturas que mais gostaríamos de ter uma entidade superior dotada de uma espécie de varinha mágica que tudo resolvesse. E quando isso não acontece rapidamente encontramos um bode expiatório sobre o qual descarregarmos a nossa frustração. Aparentemente a guerra na Ucrânia terá exacerbado esses sentimentos.

Na realidade trata-se de uma reação até certo ponto compreensível se pensarmos que se baseia numa perceção ilusória, baseada em aparências, de que essas organizações têm muito dinheiro e poder. Não é verdade que o SGNU é visto muitas vezes a ser recebido ou – mais importante ainda – a receber, a seu pedido, dirigentes de todo o mundo, mesmo das maiores potências ? Então porque não dá ele instruções ao agressor para cessar a agressão ou ao exército das NU para intervir? Porque não manda a polícia das Nações Unidas deter o responsável pela agressão? Aqui podemos já identificar um primeiro mito: que a Organização das Nações Unidas é muito poderosa. Ou seja: o poder das Nações Unidas, existe, naturalmente, mas reside primordialmente ao nível da iniciativa, não tanto da decisão e da vigilância do cumprimento, não tanto do dito cumprimento.

Do poder da Organização das Nações Unidas e outras organizações intergovernamentais

Antes de mais importa sublinhar que as considerações aqui tecidas apenas se referem às organizações intergovernamentais – como o próprio nome indica criadas entre governos – que no ato da sua constituição definem o seu mandato, por outras palavras estabelecem os limites das suas competências. Por oposição às de caráter supranacional – isto é, com capacidade para impor decisões aos Estados e de os sancionar em caso de incumprimento, como a União Europeia.

A natureza e limitações do trabalho intergovernamental

As organizações intergovernamentais não dispõem de capacidade de decisão mas de iniciativa e de proposta, de convocar os Estados membros a debater assuntos da sua área de competência e assegurar a respetiva logística – sim, parte do seu orçamento tem esta finalidade – relativamente aos quais podem adotar medidas por consenso na maioria dos casos, noutros por voto.

Note-se que, constituindo a palavra consenso parte do nosso imaginário positivo, esta pode assumir uma natureza ou consequência redutora quando se procura uma análise e decisão que possam ser aceites por todos ou a maioria de Estados, que são soberanos – ou seja com autoridade exclusiva para se associarem ou não às iniciativas – com vivências, crenças, ideologias e interesses diferentes e por vezes mesmo antagónicos.

A consequência consiste por vezes na aprovação do que constitui o menor denominador comum, isto é, aquilo com que todos podem concordar, o que às vezes significa apenas uma pequena evolução em relação ao já existente, muitas vezes percecionada como pouco ambiciosa.

As Nações Unidas não são uma entidade acima dos Estados soberanos com poder para impor decisões. Delas apenas saem as decisões que o somatório – ou ‘subtratório’ – das vontades soberanas dos Estados determina. Claro que, uma vez adotados instrumentos juridicamente vinculativos, os Estados que deles são Parte ficam obrigados ao seu cumprimento, existindo órgãos que avaliam esse cumprimento, em determinado período, incluindo se foi total ou parcial, e fazer recomendações em caso de incumprimento. Mas o facto de esses órgãos serem de composição limitada (isto é, neles não estão todos os Estados representados em simultâneo) e de os lugares existentes serem preenchidos com distribuição geográfica – para permitir a representação dos interesses e perspetivas de diferentes regiões do mundo – e, dentro desta, muitas vezes por eleição, nem sempre é facilitador das decisões mais objetivas.

Quer isto dizer que não têm valor e/ou não trazem valor acrescentado? Não, o simples facto de promoverem o debate e alguma decisão, que obriga a um exercício de conciliação de vontades, constitui uma vitória. O facto de se constituírem como palco mundial no qual recaem os holofotes de todo o mundo – por exemplo a atenção da comunicação social quando se reúne para debater questões sensíveis ou que suscitam paixões/convicções tem frequentemente um efeito dissuasor ou mitigador de comportamentos tidos como condenáveis. O caso da invasão da Ucrânia pela Rússia, ou seja a aparente indiferença da Rússia relativamente à fortíssima e generalizada condenação internacional, só poderá ser contextualizada pelos historiadores.

Os resultados reconhecidos como positivos muitas vezes não são devidamente atribuídos e muitos resultados positivos não são percecionados como tal

O regime intergovernamental – com todas as suas limitações – foi responsável, ainda assim, por etapas de enorme progresso civilizacional, como a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos ou os tratados sobre direitos específicos, civis e políticos, económicos, sociais e culturais, das mulheres e crianças, entre outros, e a criação do Conselho de Direitos Humanos ou dos órgãos dos tratados que vigiam o bom cumprimento entre pares.

Todos os dias pessoas em todo o mundo exercem esses direitos sem saberem ou pensarem que o estão a fazer. Eles parecem tão evidentes e inquestionáveis que quase assumimos que sempre existiram ou têm origem divina e que os seus infratores serão punidos por Deus. Não, embora a maioria de nós reconheça que esses direitos são inerentes à pessoa humana e portanto protegidos por Deus, Deus não legislou sobre os direitos humanos – foram os Estados soberanos que subscreveram pactos entre eles visando a sua aplicação universal.

Naturalmente, ao poderem ter um papel decisivo na adoção ou não de um documento por um órgão, os Estados soberanos utilizam esse poder, retirando-lhe, se necessário, aspetos que não subscrevam total ou parcialmente ou que considerem difíceis de cumprir, em particular quando se trata de documento juridicamente vinculativo.

E aqui se regressa à questão do menor denominador comum. Valerá a pena os Estados mais avançados em determinadas matérias aceitarem um documento com padrões inferiores? A minha convicção é que sim. Uma vez que não existe uma entidade superior, o caminho da universalidade tem de ser percorrido gradualmente.

O que importa é não descer do patamar do aceitável e então o ótimo pode ser mesmo inimigo do bom. A frustração, e por vezes dramatização, com que alguns ativistas encaram o resultado menos ambicioso de determinados eventos – por exemplo conferências sobre as alterações climáticas ou sessões do Conselho de Direitos Humanos, revela algum erro de avaliação das opções disponíveis: há resultados que podem parecer muito maus se aferidos em comparação com o que consideramos ideal. Mas e se compararmos com nada? É essa a avaliação que fazem os diplomatas. Não é preferível o país – neste caso fictício do Naohadireitoshumanosnenhuns – aceitar, reconhecer e ser avaliado pelo cumprimento de princípios fundamentais, do que manter se à margem de todos, desde que respeitado um patamar mínimo?

Em suma: o mito de que a ONU foi criada para tornar o mundo melhor e não o faz por incapacidade ou inércia, ignora o facto de esta não dispor de vontade própria nem de poderes supranacionais, nem tão pouco de um exército.

Qualquer intervenção em situação de conflito armado carece de aprovação no Conselho de Segurança, composto por 15 Estados Membros, cinco dos quais dispõem do estatuto de membro permanente com direito de veto.

Todos sabemos tratar-se de arquitetura engendrada no final da Segunda Guerra Mundial pelos seus vencedores, que visava mantê-los no controlo dos acontecimentos e permitir-lhes reagir rapidamente a eventuais aventureirismos, evitando a repetição das atrocidades e destruição ocorridas.

Podemos considerar que estes países, à época heróis, aproveitaram esse estatuto para atribuir a si próprios uma vantagem em relação aos outros, mas importa não esquecer que foram eles que suportaram os enormes custos da Guerra e do esforço militar necessário para que o lado bom a vencesse. Podemos censurá-los por, à época, pretenderem evitar a sua repetição?

Na minha perspetiva o problema não terá estado tanto no desenho enquadrado à época, mas na presunção de que essa arquitetura, adequada numa situação em que se saía de um conflito terrível, se manteria adequada com o decorrer dos anos, não carecendo de um mecanismo de revisão automática. E que os vencedores, as potências que estiveram do lado certo da história naquele conflito se manteriam coesas em matérias de interesse comum, não obstante a cisão ideológica entre as democracias/economias de mercado ocidentais e os regimes ditatoriais e comunistas.

As soon as possible (logo que possível)

Uma das técnicas mais utilizadas para tornar viável a adoção universal de um documento com metas essenciais (por exemplo para a preservação do ambiente, a luta contra a pobreza e a desigualdade, entre outros assuntos), é a substituição das datas propostas pelos especialistas pela expressão “logo que possível”. Não sei se existe algum país que nunca tenha a ela recorrido.

É evidente que esta substituição retira força, eficácia e a pressão do prazo, mas ainda assim o facto de o mesmo ou os mesmos objetivos serem aprovados e validados universalmente constitui por si só um resultado positivo.

E também aqui importa recordar os incansáveis esforços do atual SGNU para que os Estados tomem decisões à altura da premência e gravidade da situação, como é o caso das alterações climáticas.

É para uma melhor ponderação da avaliação do valor destes resultados, muito desvalorizados pela opinião pública, que espero contribuir com este exercício.

1 O presente texto foi escrito pela autora na sua capacidade pessoal. As opiniões nele contidas não constituem necessariamente posição oficial.

2 A autora é crente, não pretendendo com este texto afetar a crença em Deus, apenas suscitar uma melhor reflexão sobre o papel da ONU nas nossas vidas.