Não há melhor engodo para atrair leitores a um artigo do que dar-lhe como título uma óbvia falácia. Fosse o título “Há falta de médicos!” e ninguém teria curiosidade em ler argumentos para justificar o que todos (pelo menos aqueles que não pertencem à classe médica) acham ser, no seu subconsciente, uma lapalissada. Embora esta não seja a minha área e possa ser considerado um atrevimento da minha parte, escrevo este texto sob a perspectiva de utente que, infelizmente e à medida que o tempo passa, vai ficando mais e mais dependente do acesso aos prestadores de cuidados de saúde. Por isso mesmo, espero não ferir a susceptibilidade dos meus amigos médicos que tanto prezo (e que espero me continuem a tratar na doença com a excelência e amizade com que sempre o fazem em Portugal). Contudo, parece-me que na maior parte dos artigos que tenho lido (não só de médicos) assim como nos debates e nas entrevistas radiofónicas ou televisivas, há uma menorização de um aspecto que, para além de todos os outros já amplamente debatidos, me parece ser fundamental: há falta de médicos – nomeadamente especialistas – em Portugal (mais concretamente, no SNS). Perante a constatação de que em Portugal há quem não tenha médico de família, é para mim uma surpresa como se consegue negar esta evidência.
A primeira razão que suporta o meu argumento está no princípio mais fundamental da economia: a lei da oferta e da procura. Quando há pouca oferta e muita procura, os preços sobem e, no caso das profissões, há uma migração natural para os empregadores que oferecem melhores condições (normalmente remuneratórias, mas não só), neste caso os privados. Por outro lado, se os privados podem absorver mais médicos retirando-os do público, é porque há mercado para isso, e esse deveria ser por si só suficiente para concluir que precisamos de mais médicos em Portugal. A consequência é que o SNS vê-se assim com menos médicos para cumprir a sua missão. O efeito perverso é que esta realidade conduz a um paradoxo: para suprir a falta de médicos a tempo inteiro, o SNS vê-se obrigado a triplicar o ordenado (ou seja, a contratar um médico quando poderia ter três) quando a sazonalidade assim o exige, ou a contratar médicos tarefeiros que, de acordo com a RTP, acabam por ganhar num só turno de 24 horas o que um médico no início de carreira ganha num mês inteiro (bem sei que as coisas não são assim tão lineares, mas isto merece tantos pontos de exclamação quanto os médicos que poderíamos ter contratado no seu lugar: !!!!!!! – ou, pelo menos, quantos poderiam ter sido contratados com cerca do dobro do ordenado do início de carreira: !!!). Para além de patético, este absurdo leva a um ainda mais elevado custo para os contribuintes, pois se houvesse mais médicos poder-se-ia alargar essa oferta para os utentes ao mesmo tempo que se lhes paga (aos médicos e não aos utentes) uma hora mais justa sem ter que entrar por valores astronómicos numa perspectiva reactiva. Ou seja, sem mais médicos especialistas disponíveis para trabalhar a tempo inteiro, por melhor que seja a gestão, milagres todos sabemos que quando acontecem é na igreja, não no hospital.
A segunda razão tem que ver com a Ordem dos Médicos ser relativamente corporativista ao limitar o acesso à profissão, pois é razoável assumir que se o faz, o faz para reduzir a competição para quem já lá está (é inquestionável o seu papel e dos seus profissionais na defesa dos doentes, pelo que não considero que a sua missão natural tenha estado alguma vez comprometida). Lamento dizê-lo, mas para quem vê de fora, essa é a ideia que passa e que até já se vulgarizou nas conversas de café, por mais que o seu bastonário (pessoa por quem tenho, aliás, enorme admiração) tente argumentar em contrário. Se por um lado o bastonário da Ordem dos Médicos tem razão quando diz que não tem qualquer poder de decisão no numerus clausus das Universidades em Portugal, a verdade é que se tem pronunciado muitas vezes contra o seu aumento e isso traduz-se numa pressão, numa espécie de lobby à Portuguesa, numa certa (até) ‘magistratura de influência’, pois emite pareceres, ainda que não vinculativos, à A3ES (Agência para Acreditação e Avaliação do Ensino Superior) sobre as várias propostas formativas – incluindo de privados.
É interessante notar que é reconhecido que as escolas médicas estão a formar um número de estudantes muito acima das suas capacidades (com consequências para a qualidade dos seus formandos), mas que ao mesmo tempo se consiga argumentar contra a abertura de um curso de medicina numa Universidade privada (aqui, o que acaba por ser um ensaio com excelentes argumentos, mas cuja conclusão não parece fluir da retórica utilizada). Nesse mesmo argumento, é referido (e bem) que “o facto de aumentarmos o número de mestres em medicina sem aumentarmos concomitantemente o número de vagas para o Internato de Formação Específica (IFE) não é, de modo algum, a solução ou sequer uma solução.” De acordo. O fulcro está na palavra ‘concomitante’. O aumento do numerus clausus, em Medicina, deve ser acompanhado de um plano transversal que ofereça em simultâneo um aumento proporcional do número de vagas para o IFE. A questão é: porque é que em vez de se atacar o problema a jusante (i.e., desenvolvendo alternativas de qualidade que permitam aumentar o número de vagas para o IFE), se insiste em simplificar o problema colocando barreiras a montante (i.e., restringindo o numerus clausus)? A resposta parece ser natural: porque é mais fácil, é mais barato, e reduz a competição. Já agora, é a Ordem dos Médicos quem define a idoneidade dos serviços para formar especialistas (e bem), mas depois elabora e entrega ao Ministério da Saúde o mapa de capacidades formativas (com o número de vagas aprovadas), pelo que há aqui uma dupla triagem que não só parece ser excessiva como também condicionará, evidentemente, a oferta formativa para especialistas. Não quero com isto dizer que haja um conflito de interesses porque alguém tem que fazer esse escrutínio, mas a Ordem tem muito mais poder, ainda que indirecto, do que aquele que parece fazer parecer no que toca ao numerus clausus.
A terceira razão tem que ver com um vício de raciocínio baseado em métricas que, quando usadas de forma isolada, nos levam a tirar conclusões precipitadas e que podem estar a léguas da realidade. Dizer simplesmente que Portugal é dos países com mais médicos por habitante, sendo verdade em termos absolutos, não é útil se não for devidamente contextualizado. De facto, e de acordo com o World Bank, Portugal terá cerca de 5.3 médicos por 1000 habitantes e ocupa a décima primeira posição no mundo de País com mais médicos por habitante. No entanto, de acordo com o mesmo World Bank, Portugal é o terceiro País no mundo com a população mais envelhecida, com 23% da população com 65 anos ou mais, o que parece sugerir que Portugal terá necessidades de cuidados de saúde mais acentuadas que os demais Países (excepto dois). Outra variável que tendemos a esquecer-nos é que há Países que têm outras ofertas formativas (superiores, note-se) que eliminam a necessidade de um médico ser ‘pau para toda a obra’. Por exemplo no Reino Unido existem midwives (parteiras ou parteiros) que fazem todo o acompanhamento das grávidas até ao pós-parto, incluindo o parto se a gravidez não for de risco e não houver complicações. Esta figura, tanto quanto sei, não existe em Portugal, onde se exigirá sempre a presença de um médico. Haverá muitas e tantas outras variáveis que eu não conseguirei desenvolver num espaço tão curto (número de médicos por habitante do SNS vs privado, equiparação a tempo integral vs tempo parcial, taxas de natalidade da população e esperança média de vida, hábitos alimentares, prevalência ou não de doenças regionais, balanço entre taxas de emigração e imigração de médicos, incentivos para deslocação do litoral para o interior, sazonalidade das doenças e mobilidade das pessoas, etc.), algumas até que apontarão em sentido contrário à ideia que eu pretendo defender com este texto, mas que integradas num modelo bem estruturado permitiriam estabelecer um plano muito mais bem informado (e, sobretudo, menos reactivo) de como lidar com a ausência de médicos no SNS – e dos elevados custos que isso acaba por representar.
Ou seja, o número de médicos em Portugal (em absoluto, e não só no SNS – essa é a minha tese) está longe de ser o óptimo como tem vindo a ser afirmado. Se peca, é por defeito. Ninguém quer ter médicos a mais, mal pagos e insatisfeitos, com certeza, pois isso ir-se-ia reflectir inevitavelmente numa redução da qualidade do tratamento na doença. Mas também não queremos médicos a menos, pois isso não só torna o SNS paradoxalmente mais oneroso (por via de contratações sazonais, utilização excessiva de tarefeiros, etc.), como limita o acesso aos cuidados de saúde dos cidadãos e sobrecarrega o trabalho dos profissionais de saúde Portugueses com implicações no seu bem estar, satisfação profissional, e saúde mental. Importa terminar sublinhando que os profissionais de saúde Portugueses com formação em Portugal são reconhecidos além fronteiras como excelentes profissionais (diria mesmo que fazem parte da ‘nata’), pelo que mesmo com todas as questões que se levantam com o hipotético aumento do numerus clausus, e tendo em conta a excelência persistentemente demonstrada tanto dos alunos que se candidatam aos cursos de Medicina em Portugal como dos seus docentes, tenho dúvidas de que a qualidade dos nossos Médicos fosse de alguma maneira diminuída – antes pelo contrário. Em suma, estaremos melhor no futuro (e eu acho que os médicos também, com melhores condições de trabalho e remunerações mais justas) se o numerus clausus for aumentado e se investirmos em expandir vagas para as especialidades. Uma vez que isso implicaria custos elevados para o contribuinte, sobretudo quando temos um sistema de propinas e de financiamento datado, importa abrir (mais), sobretudo à iniciativa privada, a possibilidade de oferecer novas propostas formativas. Rejeitar esta ideia perante a evidência de que há menos médicos do que aqueles de que precisamos é cruzar os braços perante um problema que dificilmente encontrará noutra solução uma saída eficaz.