As coisas nunca são tão simples como nos querem fazer crer. Nos últimos dias, semanas e meses, uma data transformou-se no santo-e-senha do regime: quem se quer afirmar de esquerda, desvaloriza o 25 de Novembro; quem se quer afirmar de direita, exalta o 25 de Novembro. O exercício teria graça, não se desse o caso de se basear num nebuloso equívoco. Esse equívoco existe tanto à esquerda como à direita, mas, convém notar, é muito maior à direita do que à esquerda. É que, verdadeiramente, o 25 de Novembro não foi aquilo que eles pensam.
A 25 de Novembro houve uma derrota, mas não existiu uma ruptura. Os planos da esquerda revolucionária que se tinha infiltrado nas Forças Armadas e tomado conta de alguns quartéis foram travados. Mas o que se seguiu não foi, imediatamente, uma democracia plena — foi uma penosa e difícil negociação. Havia partidos e militares do MFA que queriam certificar-se de que as eleições que se seguiriam — primeiro as legislativas e depois as presidenciais — não permitiriam ao bom mas perigoso povo barrar o “caminho para o socialismo” nem acabar com a tutela dos militares sobre o regime. Por isso, mesmo depois do 25 de Novembro, foi preciso falar com eles. Se aterrasse em Portugal a 26 de Novembro de 1975, a nossa direita, da Iniciativa Liberal a Carlos Moedas, ficaria certamente abismada com esta necessidade de apaziguar e ceder.
As primeiras eleições depois do 25 de Novembro seriam as legislativas, a 25 de Abril de 1976. Mas, antes do voto, tinha que haver uma Constituição aprovada; e, antes de ser aprovada a Constituição, tinha que haver um acordo. Isto porque o MFA não pretendia deixar os partidos à solta. Em vez de permitirem que os deputados constituintes, democraticamente eleitos um ano antes, cumprissem a sua função em absoluta liberdade, os militares impuseram-lhes a sua força. À procura de oxigénio, os partidos tinham assinado, a 11 de Abril de 1975, um pacto em que o MFA ditava as suas exigências para a futura Constituição — que incluíam, naturalmente, a criação de centros de poder que prolongassem o seu controlo sobre o país. Depois do 25 de Novembro, esse pacto não foi rasgado, foi apenas reescrito: ficava determinado, como se fosse a pedra dos Dez Mandamentos, que o MFA continuava a mandar mesmo sem ter votos. No PSD, Sá Carneiro resistiu literalmente até ao último minuto: a assinatura do segundo Pacto MFA-Partidos estava marcado para as 20 horas do dia 26 de Fevereiro de 1976, mas o partido anunciou que só às 17 horas teria uma posição final. Forçado a ceder, Sá Carneiro recusou-se a assinar pessoalmente o papel. O PS mandou o seu líder, Mário Soares, à cerimónia; o CDS fez o mesmo, com Freitas do Amaral; mas o PSD enviou apenas Magalhães Mota, tendo Sá Carneiro preferido o recolhimento à humilhação. Este pacto ditava, por exemplo, que a Constituição a aprovar pelos deputados teria obrigatoriamente de ter um Conselho da Revolução, constituído por militares e armado com vastos poderes.
As segundas eleições seriam as presidenciais, a 27 de Junho de 1976. Mas, também aqui, apesar do 25 de Novembro, a escolha chegou primeiro e o voto apenas depois. Os partidos perceberam logo que não teriam liberdade para promover os candidatos que entendessem: o primeiro Presidente da República eleito teria obrigatoriamente que ser um militar. Sendo assim, era preferível deixá-los escolher.
Mário Soares convidou para almoçar Melo Antunes, Vítor Alves e Vasco Lourenço e combinou o seguinte método: o líder do PS entregava-lhes uma lista de quatro nomes possíveis e os militares escolhiam um. Essa escolha foi feita pouco depois por nove homens que se sentaram no Forte de São Julião da Barra: Vasco Lourenço, Melo Antunes, Vítor Alves, Pezarat Correia, Franco Charais, Marques Júnior, Sousa e Castro, Ramalho Eanes e Pires Veloso. Este último, que era comandante da Região Militar do Norte, fora convocado apenas na véspera e, depois de perceber que o motivo do encontro daquele pequeno grupo era escolher o candidato que inevitavelmente venceria as presidenciais, lançou, entre o espanto e a indignação: “Que democracia é esta?”.
Era uma boa pergunta: com receio de novos golpes, PS, PSD e CDS reconheciam que teriam inevitavelmente de apoiar a escolha que saísse daquela sala. No final, o escolhido foi Eanes, com sete votos. Vou repetir: na prática, sete militares fechados num forte escolheram o Presidente da República dos cinco anos seguintes. As eleições propriamente ditas foram apenas uma formalidade.
O que tudo isto quer dizer é que Portugal não se tornou numa democracia verdadeiramente livre a 25 de Novembro de 1975. Isso só aconteceu em 1982, quando a revisão constitucional finalmente remeteu os militares para os quartéis; e em 1986, quando foi eleito o primeiro Presidente da República civil. Se a nossa direita quer celebrar alguma coisa, celebre isso.