Quando em 16 de Outubro de 1978, João Paulo II apareceu na janela sobre a praça de São Pedro, por momentos o mundo ficou em sobressalto: quem era aquele homem com as vestes de Papa? Perante o súbito burburinho e as exclamações de pasmo por ser o primeiro pontífice não italiano em quase cinco séculos, ele acalmou a multidão com um
– Não tenhas medo!
Uma frase que repetiria ao longo dos mais de vinte e cinco anos como Papa, para significar que os seres humanos não deveriam ter medo de “abrir as portas a Cristo.” O resto faz parte da História: abriu ele próprio as portas da democracia na Polónia e na Europa, colocando fim ao regime comunista. Muitos não lhe perdoaram esse ato de coragem e que só foi possível com uma liderança forte, arrojada e coberta do Amor de que nunca desistiu ou fraquejou. Também foi responsável pelo início de um diálogo consensual, produtivo e fraterno com o judaísmo, o islamismo, o anglicanismo, o budismo e outras religiões. Teólogo brilhante, foi um dos arquitetos do Concílio Vaticano II e deixou encíclicas com uma incrível riqueza espiritual, intelectual e social. João Paulo II era o garante do triunfo da razão sobre o ateísmo e da lucidez sobre o agnosticismo.
Antes de ser padre foi ator, operário numa fábrica, seminarista clandestino e ordenado em segredo por causa da perseguição soviética. Já sucessor de Pedro, nunca teve medo de ir para o meio das pessoas e abraçar afetuosamente a multidão. Incentivou o mundo a não ter medo das dificuldades da vida e a enfrentar a injustiça ou os totalitarismos. Visitou constantemente os líderes mundiais e instigou-os a trocar as diferenças pela consciência humana, a dar preferência ao entendimento no debate. Viajou constantemente, por mais de cento e vinte países e alguns por diversas vezes. Contactou e tocou no coração de homens e mulheres de todas as condições, raças e pensamentos.
No início do papado era considerado um liberal, muito criticado pelos setores mais tradicionais: não só pelo seu discernimento teológico, mas também pela humildade com que pediu perdão, em nome da Igreja: pelas cruzadas, inquisição, divisões, perseguições, injustiça social e todos os pecados ao mundo durante dois milénios. Da mesma forma, iniciou o diálogo inter-religioso, que tinha como objetivo aproximar e encontrar pontos em comum em todas as crenças, partilhando experiências e contribuindo para um mundo menos materialista e mais espiritual. Foi ainda quem tornou a santidade acessível a todas as pessoas comuns e de todos os países e culturas, canonizando mais santos do que todos os seus antecessores juntos. Tudo isto eram mensagens claras de que a Igreja teria um papel fundamental na criação de um mundo evoluído mas fraterno, desenvolvido mas simétrico, racional mas sobrenatural.
A relação do Papa com os jovens tinha um magnetismo inexplicável. Muito mais do que discursar, conseguia comunicar, inspirar, liderar, ensinar, aprender e confraternizar. Foi João Paulo II que deu a ideia de os jovens católicos se reunirem de dois em dois anos, o que foi o início das Jornadas Mundiais da Juventude. Sorria de forma genuína e trazia uma mensagem de esperança, tocante e que não pretendia converter – mas sim abraçar e confortar. Mas apesar de tudo isto, soube repreender quando foi necessário. Mostrou que a liderança da Igreja necessita de uma personalidade forte e corajosa. Confrontou publicamente o padre Ernesto Cardinal, um marxista que acreditava no comunismo cristão e era membro dos sandinistas da Nicarágua. É acessível a todos e fortíssima, a imagem do Papa a ralhar energicamente com Cardinal e este com a cabeça baixa, visivelmente envergonhado. Só há três anos é que o atual Papa voltou a dar-lhe o direito de ministrar os sacramentos.
Evidentemente, esta postura valente e desassombrada, fez com que várias vezes o tentassem matar. Em 13 de Maio de 1981, sofreu um atentado pelo extremista Ali Agca, que por pouco não lhe tirou a vida, mas que deixou sequelas físicas irreversíveis. “Não tenhas medo” foi a primeira frase do anjo a Maria há dois mil anos e as palavras com que João Paulo II encontrou conforto. A data e o pedido de interceção a Nossa Senhora fez com que Portugal passasse a ser um lugar especial para o Santo Padre.
Quando a doença e a velhice começaram a tomar conta do seu corpo, nunca recuou ou se deixou abater. Não teve problemas em mostrar ao mundo a sua crescente fragilidade física e o sofrimento notório. Foi nesta fase que eu próprio tive o privilégio de estar perto dele. Lembro-me como se fosse ontem do 13 de Maio de 2000, quando fui atrás do andor de Nossa Senhora e ajudei na comunhão, na presença de João Paulo II. Apesar de combalido, tinha no olhar uma vida e uma força muito superiores ao de um jovem como eu. E quando passei a um par de metros dele é que senti realmente a dignidade e a esperança com que pegava na cruz do seu próprio sofrimento. Não era uma cruz qualquer: era a mesma que tinha sido carregada por um condenado à morte há dois mil anos, até ser crucificado. Também a mesma que eu e todos os seres humanos arrastamos, mas de que muitas vezes nos envergonhamos ou tentamos ignorar, até deixarmos que nos imobilize. Foi ali que compreendi: “não tenhas medo de carregar a tua cruz com dignidade”.
Quando João Paulo II deixou a cadeira de Pedro, uma súbita escuridão caiu sobre o mundo. A Igreja vive hoje tempos muito difíceis e corre o risco de deixar de ser católica (universal). Os seus inimigos viram esta oportunidade para a atacar e menosprezar, de a tentar levar novamente para as catacumbas e a clandestinidade. Desde a protestantização dentro da própria Igreja, até ao triunfo daqueles que querem destruir a Família como raiz da sociedade e a extinção dos valores humanos sob os quais a civilização foi construída. Vemos isto hoje nas nações, nas casas e nas pessoas. O medo impera. Mas esta não foi a primeira vez que a Igreja teve uma crise, nem será a última. É apenas mais um teste à obediência e à santidade de todo apostolado, sendo que ninguém entre nós sabe quanto tempo durará esta noite escura. Há só uma certeza bem clara: a Igreja prevalecerá e o jugo das circunstâncias que hoje parece tão pesado, amanhã será apenas uma pequena névoa quase invisível. Esta é a certeza de uma promessa que, não sendo minha, tenho a certeza que se cumprirá.