Há alguma frieza e crueldade no modo como se reduz um atentado a apenas mais um acto terrorista. É verdade que, em termos históricos, a tragédia de Nice não foi a primeira, nem será, infelizmente, a última. Contudo, para todos os que nela pereceram e para as famílias das vítimas, Nice não foi apenas mais um episódio de uma tragédia já conhecida: foi o acto final de um drama que não se pode subestimar. Por mais sinceras que sejam as condolências, ou por mais sentido que seja o pesar, ninguém pode restituir a vida às pessoas que a perderam, nem compensar os que sofreram tão irreparável perda.
Foi assim também a 13 de Novembro de 2015 quando, em Paris, o Bataclan se converteu num antro de horror e de morte. Antoine Leiris viveu muito de perto este drama, em que morreu a sua mulher e mãe do seu filho, de apenas um ano e meio. Para exorcizar a sua alma e preservar a inocência do seu filho, redigiu um texto que é “um acto de resistência ao terror, uma homenagem à mulher, Hélène, e um testemunho de amor e esperança para o filho, Melvil. Um libelo contra o ódio, por um futuro de amor e paz” – lê-se na badana desse livro, que a editora Objectiva deu à estampa, com o título desta crónica, em Abril deste ano.
É para os terroristas que assassinaram a sua mulher e a mãe do seu filho que Antoine Leiris escreve as linhas mais impressionantes: “Na sexta-feira à noite, vocês roubaram a vida a um ser excepcional, o amor da minha vida, a mãe do meu filho, mas não terão o meu ódio. Não sei quem vocês são e não quero saber, são almas mortas. Se esse Deus em nome do qual matam cegamente nos fez à sua imagem, cada bala no corpo da minha mulher terá sido um ferimento no Seu coração”.
Contudo, Antoine não cede à tentação da vingança: “não, não vos darei o prazer de vos odiar. E, no entanto, vocês fizeram tudo por merecê-lo, mas responder ao ódio com raiva seria ceder à mesma ignorância que fez de vocês quem são. Querem que eu tenha medo […]. Pois perderam. […] É claro que estou destroçado pelo desgosto, dou-vos essa pequena vitória, mas será de curta duração. Sei que ela nos acompanhará todos os dias e que nos reencontraremos no paraíso das almas livres, ao qual vocês nunca terão acesso”.
“Somos dois, o meu filho e eu, mas somos mais fortes do que todos os exércitos do mundo. Aliás, nem sequer vos vou dedicar mais tempo, vou ter com o Melvil, que está a acordar da sesta. Tem apenas dezassete meses, vai lanchar como todos os dias, depois vamos brincar como todos os dias, e para o resto da vida este menino vai fazer-vos a afronta de ser feliz e livre. Porque não, também não terão o ódio dele”.
Não é fácil reagir com tanta nobreza e dignidade a uma tão vil ofensa: a resposta natural seria a da retaliação, a de exigir ‘olho por olho e dente por dente’, a de ceifar as vidas culpadas pelas mortes inocentes. Seria expectável, pelo menos, um desejo, senão de vingança, pelo menos de reparação pelo crime cometido. Mas uma represália pelo crime seria já uma cedência à lógica que preside a estes ataques que, não em vão, são terroristas. De que serviria matar mais mulheres, homens e crianças inocentes na Palestina, na Síria, ou no Iraque? À injustiça não se pode responder com a injustiça de sinal contrário, mas com a justiça e a lei, mesmo quando estes meios possam parecer insuficientes ante um mal tão brutal e aterrador. A superioridade da civilização está, precisamente, nesta sua aparente fraqueza: no dia em que os terroristas tiverem logrado que se lhes responda na mesma moeda, alcançaram o seu objectivo e já nada deles nos diferenciará.
Humanamente falando, não se pode pedir mais do que o viúvo de Hélène e pai de Melvil foi capaz de escrever, neste seu tão pungente depoimento. Mas a caridade cristã, que obriga a lutar implacavelmente contra o mal, vai mais além desta mera recusa do ódio e da vingança. Sim, é verdade que, “se esse Deus, em nome do qual matam cegamente, nos fez à sua imagem, cada bala no corpo da minha mulher terá sido um ferimento no Seu coração”. Mas é igualmente verdade que também os assassinos, por muito que nos custe reconhecer, foram criados à imagem e semelhança de Deus: eles não são ainda “almas mortas”, nem ninguém os pode excluir já do “paraíso das almas livres”. Não há, neste mundo, pecador que se não possa converter, nem justo que não se possa condenar.
Cada cristão pode e deve defender-se e defender a sociedade, também pelas armas, desde que o faça por meios lícitos e proporcionados. O terrorismo não admite nenhuma tolerância. Mas, se Cristo perdoou os que o crucificaram, o cristão também está obrigado ao amor e ao perdão: “Ouvistes que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem” (Mt 5, 43-45). Pode-se amar e orar pelos terroristas, sem deixar de os combater e punir, do mesmo modo que os pais, quando repreendem e castigam os filhos, não os deixam de amar.
Quem cultiva apenas os valores laicos da justiça e da tolerância, talvez consiga não se vingar, nem odiar. Mas só quem professa uma moral superior, como a caridade cristã, pode, sem abdicar da luta pela justiça e pela paz, perdoar e amar os inimigos.